27 de setembro de 2009

lava mais branco


©ignacio, la loi à Grasse

Voltei.
Fiz ontem 1900 km de distância, a tempo de depositar o meu voto em branco. Podia ter regressado hoje, mas faço questão em votar, mesmo que não tenha em quem. Não me digam é que o voto branco é preguiçoso e indeciso. Pode ser o mais difícil e sofrido de todos. Até porque quem vota em branco, no fundo, espera que o seu partido não ganhe e que nunca mais tenha que votar nele.
É um voto triste.

18 de setembro de 2009

comentários desligados


vou ali e já venho.
por acaso, ao local onde estes dois garbosos defuntos apanham sol.
entretanto, desligo a postagem. os comentários, não. se um dia estes me enfadarem, retiro-os discretamente, não preciso de estar sempre a anunciar ao mundo que não estou pra conversa.
mas, bueno, foi para isso que se fez o 25: para se poder postar, comentar mas também para chapar na cara dos outros que se lhes tira o pio.

16 de setembro de 2009

just put your lips together and blow


Bacall no twitter: "o melhor de chegar aos 85 é poder fumar tudo o que se quer".

14 de setembro de 2009

galeria sargadelos


A maior parte dos meus amigos segue, apoia e vai votar no Bloco de Esquerda. Eu não. Posso estar a preparar-me para votar em branco, o que me chateia solenemente, mas, quanto mais ouço o padre Louçã, mais segura estou de que dificilmente algum dia poderei votar no Bloco. Pelo menos, enquanto o Bloco for o que é: refúgio de estalinistas, maoístas, leninistas não reciclados, de gente que faria sentido ter sido tudo isto aos 20 anos e há 30 anos atrás, mas que verdadeiramente não mudou, ficando na sombra, numa espécie de limbo revolucionário e involuindo depois para a panela comum do Bloco, onde, os medíocres agarram o osso do discurso veemente e rápido de Louçã e os melhores lhe reconhecem a inteligência e lhe aplaudem a pretensa superioridade moral. Mas todos atrás do osso do Xico. O Xico é que é. Ora, o Xico parece-me um insuportável moralista em quem não consigo acreditar, mesmo quando está a defender causas com as quais até simpatizo ou que defendo convictamente. Ultimamente vê-se mesmo que anda a pregar na antecâmara da sacristia, preparando os paramentos para entrar solenemente no altar-mor.
A verdade é que não tenho pachorra para moralistas e começo logo a pensar noutras coisas quando os ouço perorar.
Há pouco dei uma volta pela net e verifiquei que há quem fale dos perigos da louçanização do BE.
Santa inocência! Como se isso fosse de agora...
Mas eu gosto é da fórmula “perigos da louçanização”. Faz-me lembrar uma cantiga d’ amigo de D. Dinis e, ao mesmo tempo, parece remeter para cuidados a ter com a louça sanitária especialmente refinada. Só não sei bem se a tendência é nacional como a das fábricas Valadares e Ceres, se é mais para o internacionalismo como a Roca.
Fiquemos com D. Dinis que também devia ser dado a grandes telhas, visto ter feito tudo quanto lhe dava na veneta.

D. Dinis, CV. 172, CBN. 562

Levantou-ss' a velida,
Levantou-se alva,
E vai lavar camisas
Eno alto.
Vai-las lavar alva.

Levantou-ss' a louçana
Levantou-ss' alva,
E vai lavar delgadas
Eno alto.
Vai-las lavar alva.

(E) vai lavar camisas,
Levantou-ss' alva.
O vento lh'as desvia
Eno alto.
Vai-las lavar alva.

E vai lavar delgadas,
Levantou-ss' alva.
O vento lhas levava
Eno alto.
Vai-las lavar alva.

O vento lh'as desvia,
Levantou-ss' alva;
Meteu-ss' alva em ira
Eno alto.
Vai-las lavar alva.

Basicamente, é uma moça que tem um contratempo ao fazer a higiene matinal devido a uma mudança nas condições metereológicas.
Não desfazendo de D. Dinis que tinha mau feitio, mas era um grande poeta (e, pelo menos, não tinha consultório na Portagem), fico-me com o meu galego Mendinho que conseguiu a proeza de obter nomeação definitiva na História da Literatura com o magro curriculum de uma única cantiga, que, por sinal, nos fala também das más condições do tempo (agora que penso nisso, a poesia trovadoresca tinha grandes preocupações com a metereologia – isto era capaz de dar uma tese), dizia eu que a louçana do Mendinho se queixa do mau tempo na ermida de Sam Simon, na ria de Vigo (pudera!) e do namorado que nunca mais chega, o que constitui a segunda grande verdade eterna do texto e dos namorados.
Já que falámos em Louçã, louças e louçanas, a estatueta do frugal Mendinho é a única figura que tenho em louça de Sargadelos.

13 de setembro de 2009

azar pelos ares


O meu amigo A. foi ver o “aviação festival corrida red bull douro porto gaia” – parece que é assim que se chama. Devem ser as etiquetas para aparecer sob 10 mil hipóteses da net.
Relato dele:
“Oh, aquilo é um bocado decepcionante!... São uns helicópteros a voar e a parar no ar! O que se vê em terra é interessante, havia muita gente engraçada, tudo muito animado, pessoal em cima das pontes, nas encostas do Douro e pendurado em locais para os quais não se costuma olhar. Mas o problema eram os aviões. Eu estava numa tribuna vip da marinha e, mesmo assim, via mal. As curvas do rio não permitem ter um ângulo de visão muito aberto, os aviões passam muito depressa e mal tens tempo de lhes fixares o olhar em cima, tens que preparar todo o teu corpo, dos ouvidos ao coração, para o impacto do ruído das máquinas a passar perto de ti, porque até estremeces, ficas com o pescoço torcido e uma enorme dor de costas por estares com o nariz no ar e afinal eles não fazem grandes piruetas como passar debaixo da ponte D. Luís nem nada disso. Ainda por cima, fiquei com uma lista vermelha na testa, entre o fim dos óculos de sol e o começo do boné, por ter estado a tostar ao sol e mal podia abrir os olhos encandeado pela luz. Enfim, o que valeu foi termos estado à conversa com as minhas sobrinhas e ter comprado um chapéu muito engraçado para a namorada.
No regresso, viemos a cantar o 'Back to live, back to reality'".

Ou seja, se endireitassem o rio Douro, eliminando aquelas curvas que só complicam, se os aviões passassem mais devagar, com menos ruído e ao nível dos olhos dos espectadores comodamente sentados à sombra de guarda-sóis criteriosamente dispostos para não tirar a visão, mas podendo oferecer suave sombra, talvez o meu amigo A. viesse de lá impressionado. Assim, só elogiou a organização em terra e a animação no recinto ferial.
Eu tenho amigos muito exigentes com a vida em geral e com o país em particular.

quosque tandem...?


De regresso à edição, que o desvio foi longo. Refiro-me ainda a Death Sentence/A Vida em Surdina de David Lodge. A Editora Asa tem o mérito de, há alguns livros a esta parte, nos presentear com arranjos gráficos mais cuidados, fugindo à regra das editoras mainstream com capas passíveis de provocar lesões profundas no nervo óptico. Profundas e, no meu caso, irreversíveis porque não volto a olhar para elas. Ainda assim, não se coíbe a Asa de espalhar pelos frontespícios das obras editadas, dizeres chamativos do tipo pague um e leve dois. Não, é claro que infelizmente o conteúdo não é esse, mas antes tiradas de profundidade crítica como “Impressionante! (The Gardian)”, “Magistral! (Lire)” e por aí fora. E nós a gastarmos tantas palavras para apresentar um livro! Lá fora basta um adjectivo (com ponto de exclamação, note-se). Ainda para mais, já tivemos essa tradição bem representada na inefável pessoa do antigo presidente Américo de Deus Thomaz que sensatamente opinava: “Só tenho um adjectivo: gostei!”. Não há dúvida que gostamos de complicar, como dizem os espanhóis...
Na Asa, mais cuidado gráfico, mas continuação da rebaldaria na revisão como sói usar-se na maioria das editoras. A tradução deste livro (Tânia Ganho) não terá sido fácil. Há mesmo dificuldades, como os trocadilhos e mal entendidos devido à surdez da personagem, que me parecem bem resolvidas. Inexplicavelmente, surgem falhas que põem a nódoa infame na toalha impecavelmente lavada e estendida e a que uma boa revisão poderia pôr cobro. Partindo do princípio de que um tradutor não pode solucionar tudo e que há debilidades que um segundo e treinado olhar pode detectar, partindo do princípio de que os revisores são as pessoas que menos erros de língua portuguesa darão e que, por isso mesmo, um bom revisor vale ouro, as editoras deveriam apostar neles, agarrar os bons e pagar-lhes em conformidade, ou seja, bem. Muito bem, mesmo. Acham? Nã, nada disso! O que interessa é o imprimatur e pôr a circular enquanto está quente como pãezinhos saídos do forno.
E assim, como não há revisão cuidada, lá se mancha o trabalho árduo do tradutor com o jargão do taxista e do comentador desportivo. Que facada no coração da língua (portuguesa) ao tropeçar regularmente nos “eu pessoalmente”, nos “duvido de que me possam ajudar” (p. 171), na colocação incorrecta do pronome pessoal (constante armadilha de quem fala mau português) — “ela pediu-me para ajudá-la” (p. 198), “[...] ou será que qualquer método interpreta a experiência em vez de representá-la?” (p. 17) — nas repetições facilmente evitáveis — “mas motivado exactamente pelos mesmos motivos” (p. 177) — e, finalmente, num dos meus horrores de estimação: o uso e abuso do mal fadado adjectivo “respectivo”! Exemplos desta pecha entre outros possíveis (infelizmente abundam): “(...) o seu cérebro passa revista a estas possíveis acções e às respectivas objecções a cada uma delas (p. 216); “E embora fosse compreensível que os próprios mineiros e as respectivas famílias quisessem conservar o seu trabalho(...)” (p. 218).
Por que é esta obsessão com a respectividade? Será uma forma de deixar claro que não “é tudo ao monte”, embora esta ideia seja sempre portuguesmente aligeirada pela esperança messiânica do “e fé em Deus”?
Quando se diz “estavam eles e as respectivas esposas” fico sempre intrigada. Porquê respectivas? Não podia ser só “as esposas”? Para quê essa insistência no acasalamento de legalidade comprovada? Para começar, embirro com a palavra “esposa” que me soa sempre a “esponja” o que não é de grande dignidade para as mesmas (como se diria usando o mesmo padrão de mau português). Depois, questiono-me sobre as verdadeiras intenções desse adjectivo com ferozes instintos de possessividade: e se as respectivas não forem aquelas? Que temos nós a ver com isso? Ou, já que estamos em clima de ciberdúvidas, que temos nós a haver? Nada, geralmente não somos chamados para o possível folguedo que espreita, caso as esposas não se confirmem ser aquelas que deveriam ser, ou seja, as respectivas. É que até podem ser casamentos liberais ou mesmo swingers e está o narrador a coartar infinitas ramificações de possibilidades narrativas com aquele deselegante e castrador “respectivas”. É o típico narrador que julgando escrever uma frase neutra do género “Passa-me o sal, se fazes favor”, está afinal a dar um patético tiro no pé. Isto é a prova da não neutralidade narrativa, do fim da suíça da narratologia e a comprovação da ignorância dos nossos escribas que assim lançam mão dos subterfúgios mais inestéticos da língua que deveriam ter na ponta da dita. (Como vêem, é só um pequeno esforço – qualquer pessoa inteligente consegue escrever como uma besta).
Estas alarvidades de quem julga que está a falar bem, quando só está a conseguir desfeiar o português, semeando os textos a torto e a direito com os respectivo/a, mesmo/a, dito/a, chovem, como dizia o outro, das mais oriundas partes. Podem ler-se até em textos do Ministério de Educação, em textos tidos como normativos da DGDIC e tentáculos afins. Ou respectivos tentáculos, para falar bem esse mau português.
É uma praga. Dá muito nas pessoas que lêem pouco. Está para o português como a filoxera para a viticultura: em expansão inexorável e resultante da imprudência humana. É a maleita do respectivismo galopante.
Ando com um livro de José Rodrigues Miguéis à cabeceira — A Escola do Paraíso (1960). Vou abrir ao acaso, porque sei que sai sempre, nem que seja só a terminação como na lotaria:
“A luz é frouxa e tamisada”; “As janelas coalhadas de gente a olhar”; reencontro termos como "perliquitetes", "tasquinhar"; ou as imagens sugestivas d'“a bota afiambrada” (esta é queirosiana), “a penumbra atravancada”, “o cão que cainha” (esta podia ser do Mário de Carvalho), “o cabelo comicha” (esta também eu uso), enfim, uma escrita que é um manjar de surpresas do português.
Ou estoutro naco suculento:
“Ao contrário, a casa da Miquelina é um antro de excitação, embora sem derivativos nem gratificações. Há mulheres de olhos lustrosos, cor de violeta ou pervinca, às vezes macerados, doridos, com olheiras fundas, roxas: caras redondas, de boneca, epidermes alvas, rosadas e macias, com frequência pálidas (diz-se que é das noitadas), e a Sarah tem sardas, o nome sugere isso mesmo. Bocas rasgadas de sorrisos húmidos e quentes, com dentes que brilham; caracóis e encanudados, mãos cuidadas, rendas e pulseiras, perfumes e cremes, pós de arroz leves. Quando ali entra, envolve-o logo uma atmosfera carregada de feminilidade, uma indefinível, pesada, quase sufocante sensualidade, que o embriaga e enlanguesce.
As mulheres disputam-no aos gritos, festejam-no, agarram-no, erguem-no ao ar, apertam-no ao seio fofo que exala aromas, comem-no com beijos. Ele não protesta, e até gosta. Não é como ser asfixiado entre os joelhos do sr. Mealha. Nem como quando teve de dormir acompanhado de duas primas, parece, mulheres feitas na opinião dele, ambas solteiras, novas e perdidas na solidão da serrania beiroa, que o beijocavam e apertavam com frenesim: e ele, aflito, reclamava ar, queria ‘escupir’! elas riam-se. Mas há quanto tempo isso foi, tinha ele dois anos, pouco mais: durante a tal viagem memorável que ele esqueceu por completo! Aqui ninguém o beija na boca, o que teria repelido sem remédio, de nojo. Há uma pureza física no imaginário impudor.
Este mundo de meias palavras, olhadelas, vertigens e subentendidos, é impenetrável: nunca um gesto, uma palavra, um sentido explícito. Mas tem de haver qualquer coisa. Por muito que o deseje — às vezes abre uma porta inesperadamente — nunca avista um corpo nu, mesmo só em parte, nem uma cena íntima: quando muito um braço, rendas confusas, uma bata entreaberta, um espartilho preto ou cor-de-rosa, uma pantufa de borla, um retalho de epiderme quente, um gesto mais vivo de pudor, a exclamação de alarme — “Ah, és tu! Gabrielzinho, não sejas curioso!” — temperada de langor e riso... Porque se escondem elas?” (75/76)

Quantos Saramagos e Lobos e Antunes precisa uma literatura de aguentar para ter direito a gente na penumbra (gente de 3ª classe, mas de primeiríssima apanha), para ter gente que escreve assim? Quantos chatos temos de aturar ou de fintar para termos acesso a estes luxos que já se estavam nas tintas para o pedopsiquiatricamente correcto e as Laurindinhas que vêm à janela do salão paroquial, mesmo antes de se saber que estes dignos representantes da mediocridade iriam existir?

Enfim, “haja saúde!” como diz sempre um colega meu quando lhe coloco questões decisivas, intrincadas e de solução impossível. E mais direi citando a correcção linguística e o apuramento estilístico do “Diário de Coimbra” num título de uma notícia local, aqui há anos: “Faltou a luz na rua Visconde da mesma”.
Assim é que escrever, ó gandulage!

Literatura não-tão-por-táctil-mas-ainda-assim


Volto às edições e àqueles seus calcanhares de Aquiles.
Vejamos o último David Lodge, Death Sentence/A Vida em Surdina. Grande livro como todos os de Lodge.
Desde há uns anos, correspondendo mais ou menos aos seus 60 e poucos e ao começo do século XXI, Lodge tem deslizado da ironia céptica para uma nostalgia ainda céptica, de sorriso semi-amargo. Envelhecer é perder a força e é preciso muita para nos mantermos à tona do cepticismo. Ainda se ri de si próprio, mas encolhe os ombros e segue em frente de mansinho. Deixou de brincar com as perversões dos académicos da literatura, a diversão no campus à custa de rivalidades, mal entendidos e sexo mais ou menos ilícito interessam-lhe menos, como se dissesse ‘chega de amadores, vamos ao que verdadeiramente importa’. Quer agora os profissionais, aqueles que lhe moldaram a casa por onde sempre circulou à vontade. Daí o excelente livro sobre Henry James, Autor, Autor!, talvez surpreendente para aqueles que só conhecem Lodge como romancista. É um James secreto, quase alternativo a si mesmo, um Henry James que se interroga “até onde se pode ir?” na sua vida solitária e falsamente atapetada, o mesmo James que foge do ruído do mundo e que vemos ali, sob a batuta de Lodge, ávido do calor das palmas do teatro. Como diz o próprio Lodge de forma sintética e sem olhos embaciados “Autor, Autor! é uma elegia”.
A este livro de 2004, segue-se The Year of Henry James (2006), cujas primeiras cem páginas constituem um livro sobre o livro anterior, oferecendo-nos a história sobre a génese, composição e recepção dessa ficção biográfica do Mestre, processo especialmente conturbado pelas desdita e rivalidade que parecem ter saltado do infortúnio jamesiano como dramaturgo para o infortúnio do livro de Lodge, antecedido em meses pela também bio-ficção de James por Colm Toíbín, para além de outras tantas investidas no universo do autor de The Turn of the Screw nesse ano de febre jamesiana.
Vem isto a propósito do tom dos últimos livros de Lodge e vinha isto à baila ao referir-me a Death Sentence também ele atravessado por uma tristeza sorridente e pálida, elegante e íntima como uma beleza nórdica. É uma forma de Lodge nos dizer que está a sentir-se envelhecer. Não parece ser um drama, mas não é divertido. Sejamos francos: nunca é divertido para ninguém e, quem diz o contrário, mente. Se calhar até acredita no que diz, mas acreditem que estão a mentir. Ou então não estão a envelhecer. Ora, Lodge não mente. Já nos habituou a isso. É um católico num meio anglicano, admirador de Graham Green, com menos espionagem e menos almas dilaceradas, mas ainda assim sério, apesar do seu apurado sentido de humor. Ao sentir o peso da idade, deixa-o pairar nos tons maneiristas deste seu último romance. A Vida em Surdina é um grande romance sobre o envelhecimento, paralelo ao admirável livro de contos de Julian Barnes A Mesa Limão (2004) e a alguns contos de Patricia Highsmith, se quisermos falar de textos não paternalistas sobre o limite de idade.
Que estou como o outro que não chegou a velho: "Envelhecer sim, mas devagar!"

11 de setembro de 2009

hemisfério sul


1974

acerca dos anjos na poesia


joão abel manta

Noutros lugares

Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é tanto que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.

É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.

É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.

O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância permitissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.

Aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.

Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.

1967, in Peregrinatio ad Loca Infecta

7 de setembro de 2009

em cima dos meus dias



Days

by Philip Larkin

What are days for?
Days are where we live.
They come, they wake us
Time and time over.
They are to be happy in:
Where can we live but days?

Ah, solving that question
Brings the priest and the doctor
In their long coats
Running over the fields.

literatura por táctil


Grassa por este país entregue ao semi-analfabetismo um laisser faire editorial sem graça nenhuma.
Um dia destes tive em mãos uma edição do Livro do Desassossego da almazul que me deixou muito desassossegada.
Estou hoje redundante, pleonásmica e tautológica como aquela outra que faz orais a surdos e prescreve dietas na revista “Cais” com a agravante de usar o plural maggi e estático para nos levar a clímax como o do “nós, quando estivemos grávidas...”. A sério, esta pessoa existe e sou obrigada a olhá-la nos olhos sem gaguejar.
Enfim, God Give me Strength!, como diriam o Burt e o Elvis.

Mas voltando à editora alma azul (só agora reparo que se escreve alma azul, nem houve o golpezito de asa para fazer a crase gráfica já que se optou por duvidosa cacofonia... fonética - já agora para brindar à minha colunista preferida da revista dos sem abrigo).

Tendo a obra de Fernando Pessoa caído do seu baú celeste no domínio público, desde 2005 que é fartar vilanage. E assim me vem parar às mãos a edição azul do texto de Bernardo Soares. Tem 100 modestas paginazinhas com uma mancha gráfica reduzida e corpo de letra nédio, ou seja deve conter 1/5 do texto total, apresenta-se dividido em quatro partes que, verifico na badana, se transformam em outros tantos volumes da colecção com os mesmos títulos: Autobiografia - Diário; O Sonho - o Tédio; Reflexões sobre a Arte e o último e primoroso Deus é bom, mas o Diabo também não é mau.
Nada em local algum nos diz seja o que for sobre qualquer que sejam os critérios de edição e de selecção do texto: não percebemos por que é que há partes deste livro com o mesmo título de outros volumes da colecção, a partir de que edição/versão foram recolhidos os textos (terão aparecido lá em casa?) por que razão o Livro do Desassossego encolheu tanto (terá ido à máquina de lavar no programa errado?), enfim, é uma inquietação editorial, um desassossego, um vale-tudo-desde-que-se-chame-Pessoa.
Bem sei que a editora tem sido uma espécie de Madre Teresa de Calcutá de poetas ignotos deste eixo de terra de ninguém de entre Coimbra e Castelo Branco. Mas isso não lhe dá o direito a fazer o que lhe der na real gana e de vender produto da linha branca do Lidl com embalagem de loja gourmet.
Nem pude avaliar da fixação do texto porque haveria que andar a catar os nacos escolhidos e compará-los com o texto completo, ou tido como tal. Pessoa é um poeta fragmentário, mas não exageremos, caramba!
Mas, perguntarão (nunca perguntam nada, mas ainda assim tenho esperança) por que é que me encarniço com esta almazul para quem editar o que chamuscou muita pestana é canja, ou melhor, é mama. mamazul.
Não é nada de pessoal (como agora se diz, mesmo quando é uma sanha pessoalíssima a escorrer bílis). Quer dizer é pessoal só porque é o Pessoa. Mas é geral porque isto é tudo uma merda (estou na minha hora Vasco Pulido Valente).
Infelizmente agora não posso continuar, depois conto. O dever chama-me.
Verifico, entretanto, que a mesma colecção (literatura portátil) nos oferece Alberto Caeiro (numa versão a solo e ainda num mix com uma série de malta entre os quais Camões, Ritsos e outros que costumam tocar juntos). E, como ainda há pouco li num blog sério, creditado e quase benzido “Caeiro é um poeta que se lê muito bem”. Com esta recomendação e algum caldo de galinha (agora sim, mas também pode ser mama para quem preferir) vos deixo com amizade e com votos de uma rentrée suave e com menos contrariedades do que as de Cesário que ficava verde em certos dias difíceis como este.