27 de novembro de 2009

imoralidade da História


O bolo-rei
O bolo-rei tomava-se muito a sério. Não havia discussão: ele era o rei dos bolos.
Como tal, quando lhe caiu uma passa da coroa, ordenou ao bolo-inglês:
— Traz-me essa passa de volta.
O bolo-inglês fez-se desentendido e respondeu:
— Sorry! I don’t understand...
O que queria dizer, na língua dele, que pedia desculpa, mas não tinha entendido.
Então, o bolo-rei virou-se para um bolo de natas e deu a mesma ordem.
Queria, outra vez, a passa a ornamentar-lhe a coroa. O bolo de natas tinha uma fala atrapalhada, por causa do excesso de natas.
— Flá, plefe, pflu, pfló..
Não se percebia nada.
O bolo-rei, muito irritado, ordenou o mesmo ao bolo de amêndoa, que lhe respondeu:
— Também a mim me caiu uma amêndoa torrada e não me queixo.
O bolo-rei, cada vez mais exasperado, deu a mesma ordem a um pudim de gelatina, mas o pudim de gelatina era muito frágil, muito nervoso e só tremeu, tremeu, incapaz de dizer ou fazer o que quer que fosse.
— São uns rebeldes estes meus súbditos — concluiu, numa grande exaltação, o bolo-rei. — Condeno-os a que sejam todos cortados às fatias.
E assim aconteceu. Mas nem o bolo-rei escapou.

António Torrado

26 de novembro de 2009

o caminho mais curto


Vou-me embora pra Pasárgada.
A caminho passo por Rungsted.

pasta medicinal couto


24 de novembro de 2009

arrumando os lençóis de seda


Fraseado de Galehout no dia seguinte ao serão de cavalaria com Lancelot.

23 de novembro de 2009

acordo ortográfico

post scriptum


jum nakao


alexandre herchcovitch

Prá próxima sessão o tema será a Crónica do Imperador Clarimundo.
É um velho e inabalável tema no hit parade da família.
Só para aguçar o apetite, imaginem que é um livro portugês do início do século XVI que finge ser traduzido do húngaro. Nada mais, nada menos do que do húngaro, meus amigos, que é uma das línguas mais complicadas do mundo. Nem sequer é indo-europeia, é uma língua urálica. Ou seja, o português está mais perto do persa antigo do que do húngaro moderno. Só para dar um exemplo, o húngaro não tem género gramatical, é uma espécie de língua transgender o que dá logo azo a grande confusão, como calculam. Por que raio, alguém, em Portugal, foi fingir que traduzia um livro de uma língua que ninguém falava no seu país, num tempo em que não havia dicionários nem gramáticas é logo um manancial de possibilidades narrativas. Embora, pensando melhor, a escolha não seja descabida, porque, como ninguém sabia húngaro, também ninguém ia reclamar da suposta tradução. Como a vida era simples nesses tempos de baixa espionagem literária!...
Those were the days...

22 de novembro de 2009

A febre de sábado à noite



A minha colega e amiga está inquieta no sábado à noite com questões de trabalho que a não deixam sequer apreciar o belo tinto que o esposo solícito lhe foi comprar.
— É que não consigo deixar de pensar nestas coisas todas: o segundo ciclo, conseguiremos fazê-lo ou vamos encalhar e enterrarmo-nos ainda mais?, as eleições para os novos cargos com estatutos que não consigo compreender por mais que leia aquela merda, se teremos de nos lançar nessa batalha ou ainda vamos para a rua por perdermos mais horas, o que é que eu respondo ao dirigente da associação de surdos que já quase nos quer marcar encontros com o Sócrates, não consigo tirar isto tudo da minha cabeça que está ferver. Até me sinto febril. Já não sei se é stress se é gripe A, caraças!...
— Mas olha lá, tu não tens a tese de doutoramento a que tens de te agarrar no fim de semana?
— Ah!, mas hoje, nem pensar!... Não consigo concentrar-me nisso. Nem esse mundo, que me costuma ajudar tanto, hoje me vale...
— Anda lá, (digo eu já toda lampeira para me ir enfiar em frente à TV a fazer meia hora de zapping frenético), anda lá, vai lá ter com o Galaaz ou lá como se chama o gajo.
—Ai esse não, que não prestava para nada. Era pouco vivaço. Uma personagem de papel. Esse não.
— Então, o ... o coiso, o... olha, outro qualquer! Quem é que há pra lá na Idade Média que tenha interesse?
— O Lancelot, claro.
— Não, agora digo eu que não! Esse não, que já está muito visto. É sempre o Lancelot práqui, o Lancelot pralém. Está em todas, esse gajo! Outro! Um novo!
— Só se for o Amadis...
—O AMADIS?!! Porra, esse está podre de aparecer! Até eu, que não percebo nada de arturianologia, conheço a história do Amadis!.. Outro! Um novo! Não há gajos novos na Idade Média?! Não há nada de novo?!
— Não, Rosa. Na Idade Média não há nada de novo. Sabes que esse tempo já acabou...
— Essa é muito boa! A Idade Média já acabou! E logo vinda de uma pessoa que passa metade do seu tempo lá metida! Se algum filólogo te ouve ainda te excumunga...
— E com razão. Há sempre coisas novas a aparecer da Idade Média, é verdade... Mas olha, vou-te dizer: o meu preferido é o Galehout e, já agora a propósito do teu texto de há tempos sobre o Dante, que o Dante escrevia Galeotto. E também gosto muito do Galaor que era irmão do Amadis.
—Essa porra é cheia de guês! Parecem aqueles gajos que trocam os erres por guês para serem chiques. Como é qué? Galaaz, Galehout, Galaor! Caramba, tu não te baralhas com nomes tão parecidos? Parece que vão todos a galope! Bom, e é que iam mesmo.
— Não, não me baralho nada. Eu tenho muitas, mas mesmo muitas páginas para poder fixar estes nomes e mais outros tantos, muitos mais.
— Afinal com quantas páginas andas às voltas?
— Às voltas como?
— Às voltas, pá! De quantas páginas é que isso consta, o texto, o raio do corpus?
— Depende.
— Como depende? Transmuta-se como o do JotaCê?! Então as páginas não estão numeradas como agora têm a mania de fazer? Agora há esse tique de nunca numerarem as páginas como se isso fosse muito difícil de fazer no computador. Coisa mais irritante!... Depois imprime-se e se não se agrafa logo e alguém as mistura ou há uma rabanada de vento, como parece que acontecia frequentemente com o Joyce, temos que andar à procura da sequência. Ou então quem ler que se desunhe como fez o Joyce - tenho a certezinha que foi assim que ele fez só pra chatear. Mas como é isso de não saberes quantas páginas tem o texto sobre o qual andas a trabalhar há anos?! Como é que essa coisa do “depende”? Tem dias?!
— Não, depende do conjunto de fólios que considerares. Depende do ciclo. Se considerares todo o ciclo do Lancelot são, deixa cá ver, são 8 volumes, mais 1 da Demanda, 1 da Mort Artur, depois o Merlin e a Suite são 3, a Hestoire são 2... em quanto é que isto já vai?, já me perdi...
— Espera aí que eu tenho aqui a calculadora. Diz lá.
— Portanto, 8, mais 1, mais 1, mais 3, mais 2, quanto é que isso dá?
— 15.
— 15, pois. Depois mais 8 do Tristan, dá 23. Isto são só os volumes em prosa. Eu nunca fiz estas contas para não me assustar. Ainda faltam os volumes de narrativa em verso que são, deixa cá ver: Érec et Énide 1, Yvain 1, mais 1 da Charrete 3 e com o Perceval dá 4. São mais 4.
— Eh, pá, isso dá 23 volumes em prosa e 4 em poesia. É muita coisa!
— Não é poesia. É uma narrativa em verso. E isto são só as versões continentais, ou melhor só as francesas. Depois, ainda há os ingleses e os alemães, se bem que o ciclo inglês é mais tardio e...
— Ok, ok, pára aí! É muita coisa. Mas isso, traduzido em páginas, quanto é que dá?
—Também não sei dizer. É que isto está tudo em fólios. Normalmente, fazem-se as contas assim: um fólio dá sensivelmente 2 páginas. Mas espera, eu não estou a trabalhar sobre isto tudo! Só sei fazer as contas aos fólios com os quais eu trabalho. Eu só trabalho com o Lancelot, embora já tenha lido isto tudo. Quer dizer, o Amadis ainda não acabei. Deixa cá ver: 700 mais 800, dá 1500 fólios, vezes 2, 3000. São cerca de 3000 páginas. Eu trabalho com cerca de 3000 páginas. É isso. Jesus!, é melhor nem fazer estas contas que metem medo! Por isso, já vês que tenho práqui muita página onde encontrar muito nome.
— Cáspite! Então isso tem mais gente do que a Guerra e Paz!
— Mas muito mais! Embora eu, por acaso, nunca tenha confundido os nomes. Por acaso não, é mais porque os associo sempre a características que os diferenciam bem. Por exemplo, o Galaaz é um tipo muito abúlico, um choninhas mesmo, um pateta sem interesse nenhum, é pouco humano, é plano, só cumpre profecias, nem lá vou nem lá fico. O Galaor não, é um garanhão, um hispânico, é um gajo imparável: salva uma donzela e pumba!, salta-lhe para cima. Sempre!, não falha uma. Mas atenção, o Galaor não tem nada a ver com este ciclo, o Galaor é do Amadis e...
— Tá bem, isso não interessa nada. E elas? As moças a quem ele salta prá cueca? Prá cueca não, prá ceroula ou lá o que é que elas usavam...
— Elas não lhe dizem que não, porque o gajo é bonzão e depois não fica ali a dar-lhes seca, parte logo para outra e elas são salvas e ficam com uma boa memória.
—Pois, elas são salvas de uma encrenca qualquer daquelas típicas dessa época, como dragões, torreões, ou de uma de todas as épocas como sezões ou falta de tesões e ainda têm o extra de uma noite bem passada. Não está mal. Desde que não fiquem grávidas e a chorar de amores...
— Até agora não, até onde li ainda nenhuma engravidou.
—Isso cheira-me a esturro: sexo inconsequente e sem culpabilidades?... Já terão estudado a coisa por esse prisma?
— De certeza. Até há estudos queer sobre o Galehout com base na noite em que ele partilha a cama com o Lancelot. Foi só uma noite, mas não foi uma cama qualquer, era de seda e diz o texto que “muito rica” e Galehout só pensava em “fazer companhia e cavalaria” ao outro ainda que este não estivesse muito pelos ajustes. Estás a ver. Aquilo dá para muitas leituras...
— Ora é por aí que andava de certeza escondido o tal de Graal: no meio dos lençóis dos amigos. Isso é que é falar. Estou a ver é que esses arturianos queriam era uma noite prá loucura e adeus até nunca mais. Então e à propos: e se fosses beber um copo com o teu cavaleiro e dizer-lhe que tens o cinto de castidade a precisar de WD-40?
— Que é isso?
— É um clássico do bricolage, mulher! Um anti-corrosivo que se anuncia como tendo grande poder de penetração e de lubrificação. Comprei há bocado um novo spray no Continente por causa das roldanas da corda da roupa que chiam mais que a armadura enferrujada dos teus Gaaélicos todos em canto gregoriano à desgarrada.
— Não conheço. De bricolage pesco pouco. Eu é mais bolos, sabes... Vou, vou, que esta conversa está a perder a dignidade! Do meu Galaaz já conseguiste chegar aos lubrificantes, caramba!
— Pois é, já sabes como é: ando nesta fase de reduzir tudo ao bricolage. O que é que tu queres?, é a reductio ad absurdum que se arranja. Fica-te com esta, prá conversa acabar em latim que traz sempre um surplus de dignidade.

19 de novembro de 2009

à americana (e sem bolacha)


—Ó Quim! São três da manhã! O que é que tu estás a fazer agarrado ao telemóvel, em pijama no jardim, às três da manhã?! Ainda por cima a pisar o canteiro de gipsófilas que semeei na semana passada!! São três da manhã! Deixa-te de disparates e volta para a cama, anda!
— Não posso querida, estou a salvar a humanidade!

15 de novembro de 2009

castelo bejeca


do tio antónio neu para o engripalhado antónio pedro

11 de novembro de 2009

clássico-moderno


© antónio 2008


© antónio 2008

antónio & rosa para o comandante em pousio.
nós por cá todos com gripe.

9 de novembro de 2009

banalidade




JÜDISCHES MUSEUM BERLIN, 2005

CATECISMO DE HEIDELBERG (ou um post mais a gosto dos frequentadores de posts)


eu sou o cão sujo da tua cobardia.
eu detesto cães.

o mundo esteve sempre ali para ser descrito e sorvido como se não houvesse mais mundo.
partíramos do princípio errado.
nada nos poderia demover da esperança de um canto agudo do presente, mas havia um fim de que sempre suspeitáramos sem consentimento mútuo.
havia a morte.
humanos e pobres de nós mesmos não aceitávamos tal facto.
entalávamos a morte entre parênteses como uma ficção.
indelével e morno, esperava-nos um ponto levemente inebriante, escondido numa dobra do espaço.
cintilava a néon “meu pecado e miséria”.

o mundo não era uma sequência lógica.
muito menos um staccato romântico.

berlim 2005







com o atraso de 4 dias sem net.

2 de novembro de 2009

hiper-oxímoro no hiper-mercado



na prateleira do hipermercado vejo anunciado um insecticida biológico.
este destrona a máxima do garfield válida até agora.

1 de novembro de 2009

tutti santi's day


Túmulo de Dante na Basilica di Santa Croce, Firenze.
Este túmulo está vazio. Dante morreu em Ravena, no exílio. Os florentinos tentaram levar o corpo do poeta para a sua cidade natal, onde lhe construíram esta tumba luxuosa, porém os habitantes de Ravena nunca autorizaram a transladação.

"Sotto questo tumulo
Le ossa di Dante
Ebbero sicuro riposo
Del 23 Marzo 1944
Al 19 Dicembre 1945"

Túmulo temporário de Dante, em Ravena, usado para evitar os danos dos bombardeamentos durante a Segunda Guerra Mundial. Está perto do verdadeiro, na Basilica San Francesco.

Interior

Tomba di Dante presso la Basilica San Francesco, Ravena.
Junho de 1997. Este é que é o verdadeiro túmulo de Dante, uff!
Si non è vero, è bene trovato.