26 de julho de 2010
baú
alguém sabe onde está a Isabel Horta Coelho?
já sei que é no facebook que se procura, mas eu não concordo com o facebook.
música para morcegos
Sempre tinha sido um bocado ausente. Os outros falavam e ele acordava de vez em quando e lançava um comentário sério que punha os outros às gargalhadas.
Acontecera, por exemplo, uma vez à mesa em Bruxelas, nos anos 80, quando alguém muito admirado com o liberalismo dos comportamentos, dissera: “Ainda hoje vi dois rapazes na rua que iam descontraidamente de mão dada, não é verdade, João?”
E ele nada, a pensar não sabíamos em quê, quando a discussão ia tão exaltada e todos falávamos ao mesmo tempo, esbracejando e brandindo talheres por isto e aquilo.
O amigo que descrevia, como sempre, a cena de modo vívido e a queria sublinhar como um avanço inaudito, impensável em Portugal à época, repetia: “Não é verdade, João?”
Ao que ele, acordando de súbito: “O quê?”
“Os dois rapazes que vimos hoje e iam de mão dada, caramba! Não te lembras de termos comentado?”
E ele, quase sem pronunciar as palavras e com um ar grave:
“Iam de mão dada, sim.”
E imediatamente voltou a ausentar-se.
Pois sempre fora assim.
Agora, com o avançar dos anos, via-o espalmado no sofá novo a olhar para o tecto e a pensar na confusão da vida, sempre com ar de quem não está entre os terráqueos. De vez em quando acordava e fazia um comentário, mas era preciso insistir com ele e perguntar ciclicamente “E tu, o que é que achas disto?”
A maior parte das vezes, se tinha de referir alguém que lhe fizera grande sacanice, no máximo dizia: “É uma pessoa muito complicada!”
Discutimos muitas coisas, sempre com o mote da puta da vida que está difícil para todos, até que eu tentei uma pausa no pessimismo geral pela via do “Talvez noutra vida seja melhor...” o que nos levou ao inevitável “Mas para isso era preciso acreditar na reencarnação.” E por aí adiante, com os problemas subsequentes tais que “Ah, mas eu acho isso muito complicado!... Imaginem que reencarno em alguém num país paupérrimo em África ou num país de muçulmanos ferozes ou num bicho repelente. Não, para isso, antes queria reencarnar numa bactéria! Não, isso também não, porque a hipótese de haver um antibiótico potente dava-me logo cabo do canastro."
“Pois não”, dizia L., “é melhor não pensarmos na reencarnação. Definitivamente, é melhor nem haver reencarnação. É isto que temos agora e mais nada. É o prato do dia, é pegar ou largar. De modo que estamos tramados.”
“Pois.”
Silêncio breve e retomamos, depois doutra bebida, mais animados a dizer mal de alguém que vinha a talho de foice. Ele de vez em quando acordava e dizia algo de telegráfico e mais ou menos enigmático.
Até que, neste desporto de dissecação do alheio, falamos de alguém que parece ter mudado de personalidade nos últimos tempos. Era uma mulher doce e compreensiva e tornou-se amarga, complicada, implacável, justiceira de espada na mão como o pai, morto há alguns anos, sempre havia sido personalidade controversa e agreste.
E nós repetíamos: “Não se percebe, não se percebe o que se terá passado com aquela rapariga.”
Ele, que parecia adormecido de olhos abertos no sofá, sai-se monocórdico e lapidar:
“Afinal a reencarnação existe.”
Acontecera, por exemplo, uma vez à mesa em Bruxelas, nos anos 80, quando alguém muito admirado com o liberalismo dos comportamentos, dissera: “Ainda hoje vi dois rapazes na rua que iam descontraidamente de mão dada, não é verdade, João?”
E ele nada, a pensar não sabíamos em quê, quando a discussão ia tão exaltada e todos falávamos ao mesmo tempo, esbracejando e brandindo talheres por isto e aquilo.
O amigo que descrevia, como sempre, a cena de modo vívido e a queria sublinhar como um avanço inaudito, impensável em Portugal à época, repetia: “Não é verdade, João?”
Ao que ele, acordando de súbito: “O quê?”
“Os dois rapazes que vimos hoje e iam de mão dada, caramba! Não te lembras de termos comentado?”
E ele, quase sem pronunciar as palavras e com um ar grave:
“Iam de mão dada, sim.”
E imediatamente voltou a ausentar-se.
Pois sempre fora assim.
Agora, com o avançar dos anos, via-o espalmado no sofá novo a olhar para o tecto e a pensar na confusão da vida, sempre com ar de quem não está entre os terráqueos. De vez em quando acordava e fazia um comentário, mas era preciso insistir com ele e perguntar ciclicamente “E tu, o que é que achas disto?”
A maior parte das vezes, se tinha de referir alguém que lhe fizera grande sacanice, no máximo dizia: “É uma pessoa muito complicada!”
Discutimos muitas coisas, sempre com o mote da puta da vida que está difícil para todos, até que eu tentei uma pausa no pessimismo geral pela via do “Talvez noutra vida seja melhor...” o que nos levou ao inevitável “Mas para isso era preciso acreditar na reencarnação.” E por aí adiante, com os problemas subsequentes tais que “Ah, mas eu acho isso muito complicado!... Imaginem que reencarno em alguém num país paupérrimo em África ou num país de muçulmanos ferozes ou num bicho repelente. Não, para isso, antes queria reencarnar numa bactéria! Não, isso também não, porque a hipótese de haver um antibiótico potente dava-me logo cabo do canastro."
“Pois não”, dizia L., “é melhor não pensarmos na reencarnação. Definitivamente, é melhor nem haver reencarnação. É isto que temos agora e mais nada. É o prato do dia, é pegar ou largar. De modo que estamos tramados.”
“Pois.”
Silêncio breve e retomamos, depois doutra bebida, mais animados a dizer mal de alguém que vinha a talho de foice. Ele de vez em quando acordava e dizia algo de telegráfico e mais ou menos enigmático.
Até que, neste desporto de dissecação do alheio, falamos de alguém que parece ter mudado de personalidade nos últimos tempos. Era uma mulher doce e compreensiva e tornou-se amarga, complicada, implacável, justiceira de espada na mão como o pai, morto há alguns anos, sempre havia sido personalidade controversa e agreste.
E nós repetíamos: “Não se percebe, não se percebe o que se terá passado com aquela rapariga.”
Ele, que parecia adormecido de olhos abertos no sofá, sai-se monocórdico e lapidar:
“Afinal a reencarnação existe.”
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