31 de outubro de 2009

Dante/Erza Pound: a mesma luta ou teoria da configuração


Sexta-feira à noite olho para um postal comprado em Florença em 1997. Repousa há anos numa das estantes do meu escritório: “Incontro di Dante con Beatrice” de Henry Holliday. Não há como uma sexta-feira à noite para ficar a pasmar para um pré-rafaelista.

1. Dante afirmava ter visto Beatriz pela primeira vez aos nove anos e nunca mais se ter esquecido dessa imagem. Deve ser a isto que se chama uma imagem pregnante. Prenhe mesmo antes do tempo da floração biológica da prenhez. A imagem pregnante é uma relação de ajuste, de reconhecimento, em que se vive suspenso numa espécie de espera. Dante esperou, não nove meses, mas nove anos para rever Beatriz. O número nove e seus múltiplos impregnam a Vita Nuova, povoando-a de segredos. O amor por Beatriz estava repassado de memória, morte e segredo.
A representação de Henry Holliday mistura um possível segundo encontro aos dezoito anos com o impacto da epifania que se teria dado miticamente aos nove, sobrepondo os dois momentos. Beatriz, de vestes claras, passa, olhando em frente, compenetrada em não saudar Dante que, desacordado pela aparição, tenta esconder o seu amor, cortejando falsamente a rapariga de vestes fulvas e formas bem menos angelicais do que as de Beatriz.
Dante leva a mão ao peito, sublinhando o embate da revelação. Esboça o gesto do animal ferido, mas a picada da dor é bem mais profunda do que o rasgão físico da lança invisível. Naquele instante, deixa de ser homem e passa a oráculo de si mesmo. E vê, fora de si, o ideal do eu. Pensará talvez: eu sou mais um, eu também estou ali, noutro, não estou mais contido em mim, prolongo-me para um outro em que me reconheço, mas que não domino.
Dominus era o senhor da domus, da casa. O não-domínio é a expulsão da casa. Da casa do ser, doravante semi-ocupada por outro que também sou eu.
Dante é fulminado pelo prazer e desprazer que esta revelação lhe provoca. É um derrame do ser que muda para sempre a sua percepção da vida e do eu. É a descoberta da introspecção. Dante inventou o amor e a introspecção. De certa forma, inventou a psicanálise — uma psicanálise renascentista. De resto, analisar-se/ser analisado é, de alguma forma, renascer.
Descobriu que o amor é o imaginário, uma película translúcida que transmite luz, que se deixa atravessar por ela, mas, no mesmo acto, oculta, confunde e ofusca.
Descobriu que o nosso olhar é uma cortina sobre o mundo. A revelação é de tal ordem que dissolve o eu anterior e deixa-o nu, descarnado. Pronto a ser preenchido pela imagem de Beatriz.

2. Dante morreu com 56 anos e Beatriz com 24. Há quem diga que apenas se encontraram aos nove anos e que Dante nunca teria chegado a falar com ela. Como é amar sem conhecer a voz? Sem acesso ao ruído do outro? A ter acontecido assim, o poeta teria vivido durante 47 anos fixado numa imagem fugidia que por ele passara no final da infância. Vivia do oxigénio desaparecido há muito. Vivia da ideia de oxigénio.
Há quem sustente que Beatriz nunca existiu. Mas também é possível que Dante a tenha conhecido fugazmente aos 18 anos. Seria Beatrice Portinari, filha do banqueiro Folco Portinari, mais tarde prosaicamente casada com outro banqueiro, esta amada ideal que atravessa o Arno pela ponte Santa Trinità, entrando muda e saindo calada de cena, aparentemente sem outro rumor do corpo que não seja o do esvoaçar do vestido florentino.
Noutra versão, criada pelo próprio Dante, Beatriz tê-lo-ia saudado e por esse acto, convertido para sempre a um amor auto-alimentado de ideal para uns, de delírio para outros.

A pintura de Henry Holliday parece o flash de uma passagem de modelos. O modo de caminhar, o segurar das vestes e expor os pregueados de tecidos em cores que não podiam existir no final do século XIII, estes segundos míticos para o amor ocidental poderiam ser o cartaz da nova colecção Primavera/Verão 1283. Nome da colecção: Dolce Stil Nuovo.

3. Onde é que nós já vimos isto?
Todos os dias, em qualquer transporte público e em qualquer série de televisão mais ou menos apatetada.
Hoje, graças a séculos de mal entendidos e de guerra dos sexos, graças aos efeitos de muita análise mesmo entre os que a rejeitam, podemos compreender mais facilmente estes dois apaixonados. Ele fica atordoado com a força que subitamente o invade e que não quer, não pode ou não sabe mostrar e disfarça mal, namoriscando as outras. Ela, naturalmente, não gosta, e não lhe dá o que hoje chamamos, na política e no amor, uma nova oportunidade.
Se esta história nos dá jeito na literatura, mitologia, psicanálise e na cotação na bolsa (há pelo menos dois banqueiros neste enredo idílico), na realidade, as coisas não foram bem assim.
Na “vida real”, Dante casou com Gemma Donati de quem teve quatro filhos e sobre quem nunca escreveu uma só palavra. A pobre Gemma teve de aguentar toda a vida a presença de um fantasma, mais poderoso do que o da Rebecca de du Maurier/Hitchcock.

Apesar da sua gigantesca capacidade de idealização, Dante não deixava o pragmatismo por mãos alheias. Teve uma carreira política ainda que toldada por grandes dissabores (o que o fez morrer no exílio, em Ravena – não um exílio dourado, mas um exílio bizantino, um exílio aos quadradinhos), participou na vida militar (foi amigo de Carlos Martel, esse herói da não islamização da europa) e era grande defensor dos sindicatos nascentes (as Guildas). De facto, tornou-se médico e farmacêutico, não para exercer estas nobres ainda que, à época, insipientes profissões, mas para se tornar sindicalista dos boticários e, através do sindicato, aceder à vida política. Onde é que nós já vimos isto? Como é que aquela península era, nessa data distante, tão moderna e hoje serve tão mal a democracia? Tudo isto são temas para não nos ajudarem a compreender a península itálica.
Para além disso, Dante desperta, de imediato, a nossa instintiva simpatia por se ter recusado pagar as multas pesadas que o governo florentino (muito a mando da intrigalhada papal que ele sempre combateu) lhe impôs por delito de opinião política. Proscrito e desiludido, chegou a declarar solenemente que pertencia a um partido com um único membro.
Tudo isto o torna bastante mais humano e vulnerável a nossos olhos e pode ajudar a compreender a sua visão dantesca do mundo que, não raramente, coincide com a nossa quando nos pomos a pensar com alguma intensidade no que nos rodeia, sem estarmos necessariamente nas margens do Arno.

4. No Natal de 2008, ao passearmos no bairro anarquista de Exárcheia, muito menos esventrado do que mostravam os telejornais e bem mais interessante do que a restante Atenas moderna, dizia-me o meu amigo Ignácio:
— Falam desta coisa da globalização como um fenómeno mais ou menos recente, mas...
— Recente dos descobrimentos para cá, queres tu dizer — interrompo eu, armada em esclarecida.
— Não, nina, é muito mais antigo! Olha, em termos culturais, acho que... acho mesmo que começou com o Dolce Stil Nuovo. É isso!, o Dolce Stil Nuovo já era a globalização cultural, não achas? Começaram todos a escrever e a pensar e a amar como o Dante e os amigos. E nunca mais parou. É claro que ele não descobriu a pólvora. Ele e os amigos. Já tínhamos tido antes os trovadores, os nosso trovadores, com ou sem provençais que só se apaixonavam na Primavera, como diz o vosso Dom Denis. Já havia amores místicos e tomismos e platonismos e essa coisada toda. Mas esses gajos do Dolce Stil Nuovo é que tiveram o golpe de génio de pegar nessas tendências todas, dar-lhes outras roupas e exportar para o resto da Europa. E pronto, lançaram um gosto, um modelo, com formas muito diferentes consoante as épocas, mas que nunca mais parou, já reparaste? É como a moda, é perceber o que anda no ar e dar-lhe uma forma. Aí é que começou a globalização. Foi com o Dolce Stil Nuovo, garanto-te eu.

Voltávamos pela praça Sintagma. Num canto em obras, em vez do habitual “Men at Work” ou equivalente indígena, lemos e rimos com a indicação “Metamorfosis”.
E continuámos a divagar a partir deste Dante mistificador, mas tão sagaz que dele a Erza Pound não deixou de se amar, escrever e ver o ser amado de modo a que não houvesse algum fio preso a essa tarde à beira do Arno com ou sem saudação de Beatriz.

Se aqui estivesse o meu amigo Tozé remataria com a palavra de ordem: “A luta continua: Beatriz toda nua!”

25 de outubro de 2009

Bricolage dexistencial em noites de outono


— Olá! Então? Novidades por aí? Como é que vai essa montagem de cozinha?
— Nem me fales! Isso é um assunto muito longo e agora estou com pressa, que esta noite ainda aqui tenho muito que lhe dar.
— Mas então, o que é que se passa? O carpinteiro desaparecido já deu à costa ou ainda anda a monte?
— Já apareceu. O problema agora não é esse. A questão agora é que combinamos, mas ele está sempre a desmarcar, ora porque choveu, ora porque vai chover, ora porque não confia no último boletim meteorológico. O gajo tem imensos problemas com a meteorologia, tu sabes lá!...
— Mas... não estou a perceber!... O que é que a meteorologia tem a ver com a montagem de uma cozinha, se é tudo trabalho de interior?
— Aí é que está o complicado da história. Ai... ai... Vou então tentar fazer-te um resumo.
[Pausa]
— Uma pessoa pensa que pensa em tudo e nunca pensa em tudo.
— Mau!... Não me digas que vai ser uma história como a da exposição que fizeste para o tribunal e que deu tão mau resultado!...
— Qual delas?!
— Aquela em que tu começavas o texto por “Estava-se num Outono que se advinhava muito chuvoso...”
— Ah, sim, sim. Não era uma exposição, era a contestação ao processo que uma empresa me colocou por eu lhes exigir que me pagassem o que me deviam. E tive de ser eu a fazê-la, porque na véspera descubro que o advogado não tinha feito nada. Pois, essa do Outono... Que depois o juiz perguntava no relambório da matéria de facto: “Estava-se num Outono que se advinhava muito chuvoso?” e eu estava a ver que pra responder tinha de ir arranjar os gráficos pluviométricos desse ano... Ah, pois, essa história... Não. Não, desta vez é mesmo uma reflexão mais inquietante.
— Porra, que tu não consegues mudar um móvel sem angústias existenciais!
— Não é nada disso! Já vais perceber. A questão é com o isolamento térmico.
— Mas então não era só montar a cozinha?!
— Nãão! Já que vou a montar a cozinha cá em baixo e, antes disso, quero fazer o isolamento térmico lá em cima, porque aquilo no sótão é muito quente no verão e muito frio no inverno. E então pensei que devia aproveitar ter agora um mestre de obras para tratar disso. Pralém de que tem mesmo de se começar por aí. Mas o grande problema é que material usar no isolamento. Eu tinha pensado usar lã de rocha mais pladur, mas ele não concorda, quer pôr uma coisa que se chama roofmate, que ele acha que é melhor. E discutimos uma série de vezes por causa disso. Até que eu, de repente, páro para pensar: “Espera lá, por que é que eu estou práqui a insistir tanto na lã de rocha?” E então vou à net e verifico que a lã de rocha é cancerígena! E penso: afinal o homem tem razão! Já agora, deixa cá ver como é isto do roofmate. E descubro que o roofmate é inflamável, caraças!
— Ena, pá!... Ena pá 3000!!...
— Pois é, já estás a ver a coisa, não é? Estás a ver como é que eu fiquei, práli parado uns dias a pensar: “O que é que é pior? Morrer com um cancro ou morrer queimado?” Estás-me a ver, não é? É do caraças, uma pessoa apanhar-se a pensar assim!... Até que decidi: é pouco provável que alguém vá atirar um fósforo aceso para o tecto e que ainda por cima o fósforo se vá infiltrar entre as telhas e a placa. Se bem que, se a Maria Otília ainda aqui vivesse, não era de descartar tal hipótese. Pois se ela furou a parede de um túnel com o automóvel e andou anos a pagar o túnel à Confederação Helvética!... Bom, mas agora, enquanto ela andar entretida não sei por onde com os Palops, não vem práqui lançar chamas pró ar. De maneira, que lá dei razão ao homem e optei pelo roofmate.
— Então já está! Pelo menos essa já decidiste.
— Pois, mas a aplicação do roofmate implica que se levantem telhas. Nem quero pensar no que vai ser com os vizinhos quando eu disser que vou mexer no telhado, ai Jesus!... Bom, mas agora já percebeste porque é que a meteorologia tem implicações na prossecução da coisa, na montagem da cozinha.
— Mas, ó Pedrinho, isso assim é uma chatice! Tu já viste que já começou o Outono, que, por sinal, se advinha muito chuvoso? Então, agora é que tu vais mexer no telhado?!...
— Pois, mas o é que tu queres?... Isto estava programado desde Julho, mas têm-se metido umas coisas nas outras e chegamos a fim de Outubro. Estou feito, estou feito, estou aqui ensarilhado num nó que me enreda cada vez mais!...
— Então, mas por que é que tu não tratas de montar a cozinha e deixas o isolamento prá Primavera? Tens a casa cheia de materiais e uma cozinha sem funcionar: isso assim não dá!
— Porque o carpinteiro não pode vir pôr o parquet, antes do tecto arranjado, porque depois caem coisas, materiais, ferramentas e coisas assim e estragam o soalho, estragam-lhe o trabalho.
— Mas vinha agora montar só mesmo o essencial para a cozinha funcionar e depois faziam o resto, começando do tecto para o chão. Isso não é possível?
— Ser possível é, mas o carpinteiro diz que não está para cá vir duas vezes: uma para montar a cozinha e outra para pôr o parquet. Por causa da maleta.
— Da maleta?!! Que maleta?!!
— Da maleta dele que é muito pesada e ele não está para subir quatro andares, alombando com ela por duas vezes. Diz que tem de trazer as coisas dele, montar o estaminé e fazer os dois trabalhos de seguida. O que é que tu queres?, é assim!... Tu não imaginas o que eu tenho passado com estes gajos! Eu até tenho medo de um dia me atirar a algum deles e lhe torcer o gasganete!... Oh, porra, agora já estou com uma pontada na vesícula só de falar nisto. Tenho de ir fazer um chá de hipericão do Gerês. Ando a beber litros de hipericão do Gerês. Desconfio que estou a ficar agarrado ao hipericão do Gerês. Olha, beijinhos, tenho mesmo de desligar, tenho mesmo de ir, que até já estou com náuseas... Adeus, té’manhã.

24 de outubro de 2009

temos de falar



— Então?!!...
— Ããhh?!... Estava aqui a ver a mira do Canal Parlamento há um bocado, porquê?...

o retorno de Sapir-Whorf



O meu filho tem 11 anos. Há mais de seis anos (mais de metade da vida dele), que tem uma convicção inabalável: “A Lego é a melhor coisa do mundo!”

Mais nada! Não há cá modalização epistémica, não há cá estratégia argumentativa, não há hesitação, nem compaixão pelo próximo, nem mudança de paradigma: é assim e acabou-se!

Ontem, ao desligar a luz antes de adormecer, ouço-lhe um suspiro de satisfação acompanhando a velha máxima:
“ Ahh!... A Lego é a melhor coisa do mundo!”

Desta, não me fiquei:
“Melhor do que eu?! Melhor que a mãe?!”
Breve pausa e logo, sem gaguejo:
“Sim.”
Nova pausa.
“O que seria completamente bom era que tu também fosses em Lego.”

Parece que já há um David Bowie em Lego.
Alguém me arranja o número da SOS-Lego?

23 de outubro de 2009

efectivamente



Falta uma farpita.
Razão tinha Óscar Lopes, há muitos anos, ao responder, numa entrevista creio que ao "Expresso", a alguém que o questionava sobre as suas reticências em relação à obra de Saramago: “Não leu os clássicos. Já lá não vai.”

Alguns anos depois, Saramago recebia o Nobel.
Mas, isso, como todos sabemos, é irrelevante.

Certo é que se pôs a ler os clássicos e deu nisto.
Não há como uma aulinha de história literária para explicar muito fenómeno do Entroncamento.

22 de outubro de 2009

jogos florais


Saramago volta a dar nas vistas. Cá vamos assistindo a este Benfica-Sporting entre ele e o outro grande chato da litera-caturra portuguesa contemporânea, o farsolas Lobo Antunes. Eu emociono-me tanto com esta compita entre os dois escreventes como com o final da taça das taças: 0,5 na escala de Richter. De Richter ou do primo canalizador do Richter. Em qualquer escala.
Pra dizer a verdade, ainda sou capaz de sentir alguma adrenalina durante talvez uns 10 minutos de futebol renhido, enquanto a competição de originalidades e extravagâncias de domingo destes dois publicadores de livros provoca-me a emoção que deve sentir o conde Drácula durante o dia no seu boudoir unipessoal.

Não, na verdade, o futebol pode eventualmente, num ano bissexto, entre as 2 e as 3 da tarde de uma quarta feira de Julho em que esteja a chover e haja arco-íris, pode comover-me, enquanto as tiradas do estrangeirado de Lanzarote e os silêncios eloquentes do psiquiatra que canta de olhos fechados e descalço como aquele fadista da voz transgender me oferecem boas barrigadas de riso.

Mostrado que está o meu profundo desprezo por estas duas criaturas, nesta singela introdução, vou continuar.
Se possível no mesmo tom.
Não só é possível, como inevitável.
Que querem?, eu, quando detesto, é a sério. Quando gosto também. Sou alérgica a meias tintas. Deve ser por isso é que embirro com tons pastel e com rosé.

Saramago volta a meter-se com a religião. Ele é o cristianismo (Cristo já nem deve querer cá vir abaixo ver isto enquanto Saramago por cá andar), ele é o judaísmo, ele é o islamismo, tudo!, vai tudo de escantilhão, tudo pela borda fora, que esse chorrilho de disparates só tem trazido dissabores à humanidade, carradas de tontices escarrapachadas em livros mal escritos, que transformam qualquer candidato a crente em exemplo vivo de lobotomizado como acontece com este ilustre filho da Azinhaga do Ribatejo que nos vem dizer estas verdades até agora insuspeitadas!
Claro que os livros estão mal escritos! Não entregaram a revisão à Pilar del Rio e depois é o que se vê – algum dia viram a Bíblia, a Torah ou o Corão na lista dos nobelizáveis? Ora aí está: não valem um chavo!...

Era mesmo o que nos faltava para o Outono poder começar — sim, que até agora não havia maneira de se assumir. Estávamos mesmo a precisar que o crâneo Saramago nos viesse dizer que está tudo mal e urge acabar com este desfilar de asneiras. É o Saramago com a religião, a Bayer com os ratos no convento de Mafra (reparem que fui buscar um local que lhe é querido – também sei ser simpática) e o Schwarzenegger com o cyborg que quer dar cabo da Sarah Connor (outra subtileza minha: sara connor/ sara mago – o meu pensamento polifónico não brinca em serviço). Saramago, Bayer, Schwarzenegger: exterminadores implacáveis! Destes três, parece que a Bayer é a única em queda – por isso é que não me pilham nas redondezas de Mafra.

Mas voltemos à vaca fria. E não sagrada.
Leio e ouço reacções de gente chocada (os católicos – que não sou) ou de gente que se ri e encolhe os ombros (os judeus – que não sei se não serei).
O poeta e teólogo José Tolentino de Mendonça diz de forma clara e frontal que Saramago faz uma releitura “banal” do texto bíblico (acrescento a banal, revisionista), critica-lhe o “simplismo”, confessa-se desiludido com o “reducionismo” da visão apresentada. Vem tudo isto a propósito de Caim, última obra de Saramago, como está bom de ver, mas tais epítetos, linhas de força, ou simplesmente, motivos para provocar repetidos bocejos, valeriam para qualquer outro dos seus livros. A obra de Saramago tem essa vantagem — tudo o que se diga dela obedece à lei das operações matemáticas em que a ordem dos factores é arbitrária. O que dá muito jeito para teses de ideias rapidinhas e artigos à pressão.
Admira-se José Tolentino por Saramago ter tomado o texto bíblico à letra, o que, convenhamos, para quem vive de uma obra construída à custa de parábolas de mercearia é caso para se dizer que é...obra.
Mas sinceramente, não vejo neste livro de Saramago (que não li e de que não gostei) nada de novo e muito menos algo de imprevisível na sua atitude de pretensa irreverência serôdia... E sublinho que não refiro à idade do BI ou do CC – Saramago sempre foi velho, é daqueles que já nascem póstumos.
Então o homem escreve calhamaços sobre mulheres com visão raio X e scanner incorporado, penínsulas titaniquizadas à deriva por esses mares fora, pragas de cegueira mais ameaçadoras que o H1N1, centros comerciais onde Platão vai aos saldos, filmes capazes de produzir sósias que resolveriam muita chatice nesta nossa, humana, incapacidade de ubiquidade, avarias no sistema de morticídio que nos ofereceriam a vida eterna e a possibilidade infernal de lermos a saramaguiana obra completa até aos confins dos tempos, etc, etc, então o homem dá-nos estas pérolas de leitura automática e literal e não é natural e coerente que diga, que para se perceber a Bíblia, era preciso um exegeta por pessoa, exigindo para a cabeceira de cada leitor, ao lado do candeeiro de leitura, uma máquina de desemaranhar metáforas, parábolas e toda essa tralha a que ele, como sabemos, nunca recorreu? É mais que lógico! É mesmo, elementar, meu caro José-levantado-do-chão!
Ele dirá que é diferente porque se trata de religião, de uma conversa mafiosa que andou a enganar cristãos, judeus e mulçulmanos durante muito tempo (embora, com os muçulmanos, ele se atice menos – ou está com miaúfa, ou não eles perdem pela demora). Ah, e também não gosta dos prazos destas publicações, nem do timing da produção: “A Bíblia levou mil anos a ser escrita. O Corão trinta, se não estou em erro. [...] São de inspiração divina. Bah!... Francamente, que canal de comunicação tinha Maomé ou os que escreveram a Bíblia (!!!) com Deus?”
Aqui, meu caro José, tenho de lhe enviar a dica da semana: é falar com o amigo Antunes-Farsolas que diz que "ouve vozes". Será da medicação? Ou da falta dela? Será a continuação da Bíblia e do Corão num mix que poderia resolver as guerras religiosas por esse mundo fora? O que é certo é que Saramago, lá no meio da poeirada cinzenta de Lanzarote, não ouve vozes. É outra filosofia: basta-se a si mesmo, enquanto que o outro, talvez por deformação profissional, tem mais tendência para o alucinogénico.

E nós por cá a gramarmos as pastilhas (sem qualquer aditivo, note-se) destes dois marmanjos que, como repetem à fartazana, “não andam à procura de polémicas” nem querem por nada dar nas vistas.
Cito Saramgo-himself: “Isto faz algum sentido?”

Nunca pensei ter de prestar homenagem a um membro do governo de José-Mari Aznar, mas vem mesmo a talho de foice (embora sem martelo) a calinada histórica da sua ex-ministra da CULTURA, Esperanza Aguirre, aka Super-ESPE, que afirmava, comovida, admirar muito “Sara Mago, una excelente pintora.”
Essa é que é eça!

19 de outubro de 2009

sexy titânio



Melhor do que um George Clooney, só dois Georges Clooneys.

17 de outubro de 2009

kale barroca


Ao virar a esquina, ouvi aquela música estranha. Aproximei-me e vi, imagina!, uma basca a cantar fados gospel.
Foi então que percebi que ainda estava a dormir e voltei para a cama.

10 de outubro de 2009

Bricolage sexual em noites de verão


Quando ela veio com o garoto buscar os peixes, nós já estávamos a começar os arranjos. Pra dizer a verdade, andamos sempre em arranjos. Com uma casa velha a que juntámos a do lado, tentando melhorar as duas à medida que nos pagam rendas, dependendo isso sempre de descobrirmos uns inquilinos mais ou menos lixados, com empréstimos às pinguinhas e as minhas idéias imparáveis de como transformar uma casa por fases, com uma, uma não, porra!, duas famílias de gente doida, disfuncionais como se agora diz, mas para mim, e a começar pela minha, é tudo gente doida, enfim a da Lena é mais totozice que maluqueira, mas a minha tem vários casos comprovados, eu que o diga, que normalmente calha-me diagnosticá-los antes de os outros se aperceberem, vendo-me depois obrigado a anunciá-lo, com a agravante de ninguém acreditar em mim e depois ter de tratar deles enquanto todos viram as costas e sacodem a água do capote.... Enfim, doidos e comodistas, é o que são!
Já nem sei o que estava a dizer...
Bom, o que é certo é que temos tido muito fim de semana e muita noite de bricolage e agora tinha de aproveitar o verão e as casa do lado desocupada para dar um avanço na coisa.
Então, quando a Marcela chegou com o miúdo de férias, estávamos nós já lançados na obra, embora ainda em fase de aquecimento. Ainda lhe perguntei se gostava do verde duvidoso que estava a começar a usar na parede do corredor, mas ela olhou desconfiada para mim e disse logo: “Não é por nada, mas acho um bocado diarreico...”
Decidimos logo ali eliminá-lo.
Bom, nos dias seguintes, começámos a acelerar a obra e decidimos que tínhamos de a ter pronta dentro cinco dias. Claro que levámos dez.
Betumámos os buracos na madeira das portas e rodapés, disfarçámos os buracos dos pregos nas paredes com gesso. Foi preciso lixar, polir, pintar. Tive de inventar e montar um sistema complicado de mesas, cadeiras e passadiços com roldanas para chegarmos ao tecto, porque não me ajeito com escadotes. Gosto de pintar e poder esbracejar. Dou dois passos atrás para ver a direcção exacta da tinta, a ver se não a estou a aplicar em demasia. Gosto de ter espaço para um bom balanço e para conseguir puxar bem a tinta, de forma regular. Além disso, tenho de ter sítio para colocar o cinzeiro, o isqueiro, o telemóvel, o copito da cervejola. Por acaso, agora no verão, tem sido mais vinho branco fresco. Foi aliás a Marcela que me pregou este vício. Chegamos ao verão e toca a transportar garrafas de branco do super e a comparar preços e qualidades. Aqui há anos era o Bucelas, que nós espanholizámos para Buçuelas. Isso era quando circulavam espanhóis pelas nossas casas durante todo o verão e fazíamos grandes reuniões ibéricas que metiam cantar ópera à porta dos "mil olhos" às 7 da manhã, no meio do ruído dos camiões TIR que na altura ainda passavam pela ponte Santa Clara. Agora não. Quer dizer, não sei se ainda por ali passam muitos TIR, mas já não há "mil olhos," é uma tristeza esta terra... A propósito de "mil olhos", o Juan que até nem tinha um mau português para cidadão, cidadão não, súbdito espanhol (eles ficam danados quando dizemos isto, mas é a verdade...), súbdito espanhol é que é! Bom, o português dele nem é mau pra espanhol, ainda por cima nunca tendo vivido em Portugal, mas às vezes tinha assim ... umas falhas e como bom espanhol que não pode dar o braço a torcer, resolvia a coisa com umas tiradas... como dizer?... criativas. E então ouvia-nos a falar da "noite tem mil olhos", se calhar nós dizíamos muito depressa não sei, ouvia-nos falar da "noite tem mil olhos" e, durante muito tempo, pensou que o bar se chamava a noite tem mil homens! Quando lá chegou e vim que não era um bar gay, quer dizer completamente gay, estranhou o nome. Mas só à terceira ou quarta vez é que perguntou porque é que aquilo se chamava assim. Depois, para disfarçar, quando todos o gozámos e dizíamos “então, não querias mais nada, hein?” ainda disse que depois de ver que não era bar gay, pensou que era uma referência literária. É, é, chama-lhe referencia literária, chama. Ele ia era todas as noites para lá a ver se a coisa pintava! Pois, pois, só quem não o conheça...
Outra muito boa do Juan foi pensar que Zambujeira vinha de zambulhar que em castelhano quer dizer mergulhar. Como é praia, tinha de ser logo em espanhol: o sítio onde se zambulhava. São de uma força, estes gajos!... Ah, e uma outra dele também muito boa: julgava que Alentejo era a terra das lentilhas. Lentejas – alentejo. Enfim, é muito criativo aquele rapaz...
Mas, onde é que eu ia? Ah!, as obras...
As obras levaram um tempão, está bom de ver, sempre com percalços disto e daquilo, de materiais que não se encontram e de buracos e falhas que aparecem do nada. Parece que estão os podres todos das casas à espera que se mude um parafuso, para saltarem sobre nós numa reacção em cadeia... É o diabo! É mesmo tramado! Mas eu não posso parar este processo — que isto é um processo e um processo que não sei quando irá terminar... Nem eu sei, nem ninguém. Só Deus!, como diria a Amália.
Bem, tinha de ter a casa pronta a alugar no recomeço das aulas, para ir pagando o empréstimo que fiz para comprar a do lado para albergar a irmã e a prima que me caíram aqui sem eu ter pedido e que não posso agora deixar ao desamparo. Ai meu Deus!...
Uma vinha para acabar o curso e já mudou de curso três vezes e a outra vinha de férias do Luxemburgo, resolveu ficar aqui a curar o desgosto de amor e já vai no quinto namorado, todos eles Palop, vá-se lá saber porquê... Nem sei se já não fez a volta aos Palops não em 80 dias, mas em... espera lá ... quatro meses! Quatro meses, cinco namorados, teve aquela rapariga! É uma média do caneco! Ainda lhe faltará algum? Quantos Palops é que há? Porra, é melhor não pensar nisso que fico logo com uma “camada da nervos” como diz a D. Augusta do 2º andar... Ai, ai...

O que eu sei é que estou rodeado de mulheres, cada uma a puxar para seu lado, mas quando toca a organizar e a dar uma certa sequência às coisas, viram-se todas contra mim a chamar-me tirano. Qualquer dia, ainda fazem uma votação e expulsam-me da minha própria casa como aconteceu com o Tozé quando vivia em Bruxelas.
Porra pra isto tudo!

Com tanta azáfama das obras, nem uma única vez pude ir beber copo ao fim da tarde que é uma coisa que fazemos, eu e a Marcela ou eu, a Marcela e a Lena (quando não está com a telha) todos os fins de verão. Para além disso, tivemos de faltar, a Lena e eu, ao jantar anual com o Manel Queirós antes de ele regressar à Suíça. E até costumam ser uns serões divertidos. Bem que eu andava a precisar de um breakezinho assim. Uma chatice! E tudo por causa da merda das obras! E da minha vida complicada que me obriga a resolver em três dias o que não consegui resolver em três meses...

Uma noite destas, a Marcela telefonou e lá lhe pude anunciar que tinha acabado as obras na noite anterior. Fizemos uma directa para acabar tudo: 30 horas seguidas na fase final! É que já não podia mais com aquela merda! Já não podia ver trinchas, já sonhava com o cheiro das tintas, já me sabia a comida a diluente, já não me aguentava, sempre a tropeçar em móveis fora do sítio e a dar topadas nas portas retiradas dos aros e encostadas aos cantos. Lá conseguimos acabar com aquela porra e limpar a casa.
Então lá lhe disse:
— As obras acabaram! Pelo menos por agora...
E ela:
— Finalmente! Então estás todo contente!
— Contente?! Eu?! Porquê?
— Porque acabaste, caramba! Pelo menos estás aliviado!... Não ficou bem? Não está bonito?
— Ficar, ficou. Mas depois sentei-me no sofá a olhar para as paredes e pus-me a pensar que nada disto faz muito sentido.
— Como, muito sentido? Nem muito, nem pouco, catano! Acabaste as obras, tens a casa num brinco e podemos ir beber um copo e sair à vontade enquanto não vem a chuva e o frio!...
— Não, não... Isto não tem muito sentido.
— Mas que raio de sentido querias tu retirar do fim de umas simples obras que tu mesmo fizeste? Agora que tens as paredes pintadas, é que te dá para estar com problemas existenciais?
Eu calei-me, não sabia que responder.
— Estás a ouvir?... O que é que tu querias afinal?! — insistia ela já a esganiçar a voz de irritação.
— Olha, pra dizer a verdade, eu queria é que elas me fizessem um broche, porra!

Segundos de silêncio do outro lado, mas não demorou muito a recompor-se e a voltar com voz em crescendo, com aquela mania irritante de martelar certas sílabas quando quer chatear:
— Ó Pedrinho, lamento dizer-te, mas por mais que tu pin-tes as tuas paredes com todo, mas to-do o carinho, elas nunca, mas podes crer que nun-ca te vão fazer um broche! Podes esperar sentado, já te digo!

Ela tem razão.
Qualquer pessoa sabe isso. Não é preciso ser um Einstein para chegar a essa conclusão.
Nem sei porque é que disse aquilo.

Desligámos depois de mais duas ou três larachas. Até hoje, ainda não fomos beber o tal copo de fim de estação.

Amanhã vou ao Ikea ver se já há estantes Billy azuis.

4 de outubro de 2009

quiero ser ácida


não resisto a mais uma.
ela não está gorda. como diria o meu filho, é só músculo.
e que estivesse... e ela importada!

a seguir à minha fase de funcionária assassina, também vou ser santa.
lá mais para o verão.
o próximo, claro

me vuelvo crazy


La funcionaria asesina, Alaska & Dinarama, 1986

Perseguida acosada por la ley
No podrán pararme ni detenerme
Desahuciada fuera de la sociedad
robo está formado pon de tu agrado
Todo lo hago por salir de la misma rutina
tan aburrida no lo he entendido

De noche soy otra mujer
me voy armada de cabeza a los pies
soy la funcionaria asesina
ya no me aburro jamás
siempre encuentro gente con quién jugar
soy la funcionaria asesina
buscada por la policía
y he degollado a más de cien
yo con mi sierra sé qué hacer

Me casaron me obligaron a estudiar
y yo obedecía me sometía
mi marido era un déspota feroz
lo quité de en medio qué remedio
mi vocación se reveló me fascinó la sangre
maté a un sirviente con un alambre

De noche soy otra mujer
me voy armada de cabeza a los pies
soy la funcionaria asesina
ya no me aburro jamás
siempre encuentro gente con quién jugar
soy la funcionaria asesina
buscada por la policía
y he degollado a más de cien
yo con mi sierra sé qué hacer

Y los disuelvo con lejia
los mato a sangre fría
y los entierro enseguida


Deixo este recuerdo porque não sei quando volto a poder postar. Suspeito que vou seguir a vocação da Alaska. Estou prestes a tornar-me uma funcionária assassina.
Alaska foi um maiores ícones (em espanhol iconos) da Movida madrilena dos anos 80.
Foi punk, pop, acid music, electrónica, travesti, vampirela e apontada pela intelligenzia como cursi (pimba). A quien le importa? Estive agora a ver e tenho onze discos dela. É quase como dizer que tenho onze discos do Marco Paulo...
Os discos e vídeos dela têm muito mau som - por isso anexei a letra.
Era tudo muito rudimentar, mas a Movida era isso mesmo: acelerada e imparável, sem tempo para pormenores técnicos.

3 de outubro de 2009

outra loiça


©ignacio, porto do mónaco, rosa: ode marítima (é mais borla marítima)

©ignacio, glamou à Grasse (o gajo, ignacio, é que diz)

©ignacio, parfumerie à Grasse

©ignacio, cruz provençal

para que não pensem que eu fiquei obnubilada, entorpecida, mentcaptizada e lobotomizada, eis algumas provas posteriores da nossa rápida recuperação e o contraditório científico de que há vida post mortem para os neurónios.

não vos disse que a terra apatetava as mentes?


©ignacio

©ignacio
isto foi o mais interessante que conseguimos fazer.
para além de comer, claro.
é quase tão excitante como ir à feira popular.

Impressões do crepúsculo de viagem outonal com temperaturas de verão.


© ignacio, rosa a tentar perceber o que é o azul meditarrânico (ainda não foi desta)

Como disse há uma semana e muitos acontecimentos domésticos atrás, regressei.
Está bem de ler.
Mas ainda não tive uma aberta, na chuvada do quotidiano, para alinhar um telegrama de viagem.
Aqui vai.

Boa parte dos franceses continua tão acolhedora como um pit bull desgovernado.
Cannes é tão deslumbrante como Vila Nova de Famalicão. Certo, tem o Carlton com todas as janelas prestes a serem escancaradas por belezas cinematográficas em gritos dramáticos e corneillianos contra um perfume egoísta e masculino.
Não pude deixar de recordar essas furiosas beldades no abre e fecha das portadas de madeira bradando para o céu plúmbeo os versos de Pierre Corneille:

"Ô rage ! ô désespoir ! [...]
N'ai-je donc tant vécu que pour cette infamie ?"

(Le Cid, acte I, scène V, Pierre Corneille)

Mesmo eu, que tenho reduzida paciência para a actual cultura francesa (quando digo actual, digo de há trinta anos a esta parte), mesmo eu, cuja pele fica eriçada só de ler as primeiras três linhas de grande parte dos romances franceses dos últimos anos e que, com excepção do cinema, da baguette (a verdadeira, a que se come lá) e um ou outro perfume, pouco mais recebo de bom grado do hexágono gaulês, mesmo eu, repito, fiquei momentaneamente comovida diante do Carlton, não tanto por aquilo que ali via sob um sol inclemente e um cenário barulhento, atulhado de guindastes, gruas e britadeiras implacáveis, mas porque, graças à minha pouco recomendável capacidade quase ilimitada de ver televisão, pude recordar esse outro Carlton, versão Channel/Corneille.

Mas voltando à Cannes de hoje (ou da semana passada).
À parte o Carlton (e ainda assim por interposta memória publicitária), Cannes é tão interessante como Vila Nova de Famalicão, uma das urbes mais horrendas deste nosso quadrado. E se Cannes tem o Carlton e uma espécie de pavilhão desportivo onde passam filmes durante 15 dias por ano, Famalicão tem, por perto, a Casa de Camilo e, desculpem lá, mas Camilo vale bem mais do que uma escadaria minorca de vulgar betão com um tapete vermelho a disfarçar o ridículo tão a pedir a vergasta camiliana.
Em Cannes come-se bem, mas em Famalicão também, embora seja outro género. Em Cannes é mais farcis, em Famalicão é mais de entulhar, de nos farcir a nós. Mas, se virmos bem, farcir pode ser traduzido por entulhar. Varia é o momento e processo de entulhanço.
Ou seja, são dois locais onde o que é há a fazer é comer e ler ou ver cinema – o que não é nada mau e pode até ser suficiente para algumas vidas. Cannes tem praia, mas como sabem o mediterrâneo (pelo menos o ocidental) não domina bem o conceito de praia: é mais um lago tépido (o que me agrada muito), frequentemente sem areia (o que não me agrada nada) e tão povoado por gente bem despida como os passeios de Calcutá o são por mendigos.
Cannes, com esta vaguíssima noção de praia e o desfile sazonal de estrelas de celulóide, rivaliza com Famalicão com os seus arredores românticos, feiras e romarias e muito foguete a estralejar no ar. Sem dúvida, Cannes tem um um pouco mais de mármore e glamour, mas Camilo ofusca num ápice duas os três Meryl Streeps, mesmo que em Famalicão o strip seja muito eufemístico (calculo, mas nunca se sabe – só vendo, literalmente).
Pronto, está dito. Não gostei de Cannes. Tal como não gosto de Famalicão. Devo dizer que passei três horas da minha vida em cada uma destas, digamos, autarquias. Por isso sei do que falo. É uma opinião isenta, de quem não chegou a criar laços com o local.

E não me perguntarão vocês (já tenho calo nisto dos silêncios dos leitores): “E então a viagem foi má? Foi só isso?”
Não, à parte isto e mais um ou outro confronto com a mentalidade gaulesa, a viagem correu até muito bem, mas por agora o relato tem de ficar por aqui. Tenho de ir enganar outros.
Comecei pela parte da maledicência para descontrair. Sigo o conselho pouco teutónico da minha muito teutónica amiga Kirsten Brandt “Dizer mal faz bem.”

Por agora, deixo-vos com amizade (lembro-me tantas vezes do engenheiro Sousa Veloso que celebrizou esta saudação!) e com algumas fotos representativas do pitoresco da região. As fotos são da lavra do meu amigo Ignácio, meu companheiro habitual de viagem e com quem mantenho uma conjugalidade perfeita já que vivemos a 1200 km de distância.