28 de novembro de 2010

Todos os dias descobrimos a pólvora


Retomo de forma nostálgica-outonal-crise geral. Et cetera e tal.
Estranha época esta em que encontramos artigos sobre livros não nas colunas literárias ou afins mas encaixilhados sob o epíteto de “tecnologia”... Este saber construir e lidar com artefactos que requer criação e racionalidade não me assusta como donzela ofendida em ardências pelas letras inefáveis. Mas o meu coração balança mais para o lado da episteme, mais para o reino das possibilidades. No conhecimento como no uísque, prefiro-os puros. Quando muito on the rocks. Um e outro. Embora me desse muito jeito ter mais algum “saber fazer” como agora se diz. Mas já em tempos falei avonde sobre a minha tecnonabice.
Bom, vai senão quando, leio numa dessas colunas tecnológicas que o eminente autor de The amplified author and the creative reader descobriu agora isso mesmo: que o autor pode ser amplificado e o leitor criativo. Mas julgais, queridos leitores há muito transviados (e vá-se lá saber porquê), que ele anuncia isto por ter tropeçado, com quarenta anos de atraso, na Estética da Recepção ou por se ter tornado calvinista depois de ter lido Se una notte d’inverno un viaggiatore? Népia!, como diriam os alunos dos meus alunos. É mesmo uma estonteante sequência de achamentos com que nos presenteia: ele é o fogo, ele é a roda, ele é a pólvora e por aí adiante. O papel é que não! Já vamos saber porquê.
Diz-nos então a locutora de continuidade da artigalhada em causa que Chris Meade, o herói de quem falo, conclui que “Basta um computador para acedermos a livros sem precisarmos de entrar em lojas ou instituições assustadoras.” As instituições assustadoras serão, suponho, as bibliotecas, livrarias ou até as escolas. Para evitar tais sustos, basta, pim, um computador. Em pleno Sahara esta informação preciosa e modesta deve dar um jeitão. Ou mesmo na serra da Arada. É logo quem entra à direita, não há que enganar.
E vá lá que a propósito do autor amplificado se concede que Willim Blake seria encaixável neste conceito. O Blake é que se encaixa na coisa como o panado de porco no tupperware, não é o poeta que mostrou aos vindouros as suas visões romântico, místico, libertárias que expandiu a imagem do autor, estão a ver? Na tecnologia cultural a ordem dos factores é arbitrária.
Chris Meade ficou “zangado consigo mesmo por ter andado tantos anos a promover a página, o papel, e não as palavras, que é o que realmente importa.” Percebe-se o alcance da revelação. Do ponto de vista da economia dos meios, o mundo anda muito desequilibrado: as nossas evidências raramente são as dos outros, com clara vantagem para quem joga em casa.
“Para ele, os livros impressos são apenas recordações da nossa vista.” E dá como exemplo a sensação de estranhamento que temos quando viajamos para um pais cuja língua não compreendemos e olhamos para os livros “como se fossem pedaços de madeira”. A comparação é curiosa: madeira para construir casas ou madeira para deitar na fogueira? Madeira da árvore de onde veio o papel, certamente. O livro está ali em bruto, escrito ou em branco é para o analfabeto daquela língua uma experiência de cegueira e de insensibilidade totais. Esta imagem não serve só para fazer sobressair a nossa incapacidade de ler numa língua desconhecida. Serve também, num segundo plano, que aliás é o principal, para mostrar que mais cedo ou mais tarde será esta a nossa relação com os livros. Melhor, que já é assim - os livros impressos são apenas recordações da nossa visita. Não têm existência objectiva, são espelhos dos nossos olhares, sinais de memórias nossas, perecíveis como estas. Este desfile de sofismas baratos assenta na ideia simplista de que o meio não é só a mensagem, nem, ironicamente, a massagem, o meio é tudo, um mundo fechado e concluso como as mónadas leibnizianas sem janelas nem portas. E voilà: uma metafísica da tecnologia para principiantes (em metafísica, não necessariamente em tecnologia). Eu, que leio como os judeus com o lápis na mão, não poderei anotar, riscar, desenhar, deixar marcas no ecrã do iPad. Eu, pobre de mim, que escrevo entre as palavras dos outros estarei, para o reverendo Chris Meade, condenada a permanecer e perecer na idade da pedra ou, o que é sinónimo para ele, na idade do livro. Mas que felicidade a minha! Com o que poupo muito os meus ricos olhos ao pousá-lo no papel e não num ecrã com brilho, reverberações, fonte da síndrome do olho seco e sabe-se lá que poltergeists dali nos podem saltar às canelas!... Estes ecrãdependentes nunca terão ouvido a opinião dos oftalmologistas? Estranho. É um ramo da medicina muito dependente da tecnologia...
“Se queremos chegar às pessoas, é no ecrã que devemos colocar os conteúdos.” Sim, no que respeita às últimas sobre a captura de baleias talvez, para ler o Moby Dick, duvido muito.
Uma coisa é certa, diz-nos, “é mais natural publicar” nos aparelhos digitais. Não será mais natural, será mais fácil com certeza. Para quem quer promover as palavras, este senhor teima aplicadamente em as desconhecer. Ou tresler. Qualquer dia está a dizer-nos que é preciso também saber o que as palavras significam e, ainda!, que as ideias que circulam por aí, no geral, já foram dissecadas, ventiladas, abordadas, discutidas desde há muito. Ou seja, que já alguém descobriu a pólvora. Pena é que ele e sus muchachos tenham sido os últimos a saber.
É lixado ser-se o último a saber. Sempre.
Se não vejamos, a brilhante conclusão tecnológica com que nos brinda: se o iPad não vingar pas de problème. “A grande descoberta são [sic] as aplicações que ocupam todo o ecrã. Sempre assumimos que o computador nos bombardeava com coisas, líamos o nosso email e olhávamos para um web site ao mesmo tempo e as pessoas apareciam-nos de surpresa a quererem falar connosco no Skype. É caótico. A aplicação significa que podemos entrar profundamente na leitura de um livro ou ver um filme e isso tem a qualidade da leitura de um livro em papel. Isso é importante, esta coisa da atenção que damos a uma série e coisas diferentes ao mesmo tempo, as pessoas estão a discutir muito isso hoje em dia.” Ou seja, dá imenso jeito uma coisa parecida com um livro ou com um ecrã de cinema! E assim se fecha o ciclo de onde se quis sair para voltar a entrar pela porta traseira. Mas agora com comando à distância.

Esta brilhante argumentação lembra-me aqueles frutos pós-modernos e patetas que são laranja com sabor a morango ou alperce com sabor a cereja. Qual é o interesse? Baralhar-nos e preparar-nos para um alzheimer antecipado? Se eu quiser comer um morango, porque não como um morango e vou comer um kiwi com sabor a morango? Para quê este jet lag da fruticultura? Já não temos a vida suficientemente complicada com fusos horários, diferenças de classes, discriminações de raça, género e por aí adiante?!, porra!

Vou mas é ler o Moby Dick.
Sempre é uma metanarrativa.
Par o meu filho é uma aventura buédafish.


[Para a Toninha e o Toninho, dois leitores (s)amplificados]