11 de maio de 2009



Aviso por causa da mural


Anuncia-se nova tradução de A Montanha Mágica de Thomas Mann. Falsamente apresentada (via editora, jornais e outros seres sumamente esclarecidos) como a primeira tradução feita directamente do alemão para o português, lemos felizmente as palavras da tradutora Gilda Lopes Encarnação esclarecendo o que a vox publicitari teima em negar: esta NÃO é a primeira tradução do alemão para português. Um exemplo da perguntinha repetida e previamente armadilhada:

“Esta é a primeira tradução para português feita directamente do alemão?
Não, trata-se apenas da primeira tradução para português europeu, porque já havia uma no Brasil, também feita directamente do alemão por Herbert Caro. Foi uma tradução que depois teve uma adaptação estilística, ao ser publicada em Portugal, que na minha opinião não foi bem sucedida, como acontece muitas vezes nestes casos.”
(JL on line a Gilda Lopes Encarnação)


Mas então o que é isto? Por que se insiste nesta que já li repetidamente? Inventamos a divisão de uma língua por causa de negócios editoriais e distribuímos estigmas de traduções de primeira e segunda qualidade, consoante o lado do atlântico de onde o vento sopra? Que a desnecessária adaptação (de português para português para o caso de nós, portugueses, podermos não compreender português) tenha dado mau resultado é compreensível, até pelo princípio absurdo da coisa e pela alegada canhestridade de quem a fez. Vem essa tradução do tempos em que das edições nem constavam datas, tão intemporais se consideravam. Nasciam e eram logo um clássico. Tiro e queda.
Mas daí a dizer que não havia até agora tradução portuguesa, é um eufemismo ousado que, na linguagem comum, tem o singelo nome de aldrabice.
E logo o eufemismo vem de mansinho, de mão dada com a perífrase do “português europeu” para salvar a casa, a honra e as vendas da editora (que não precisa: a edição antiga, a dos “Livros do Brasil” não se encontra há muito, creio).
Enfim, está o anúncio da magia da montanha entalado nestas figuras de estilo e está a verdade sem estilo nenhum...
Para usar uma expressão da moda, é uma não-tradução, numa não-livraria, mas talvez num sim-alfarrabista, na maioria quase-não-alfarrabistas ou muito, muito assim-assim.

Mas agora pergunto eu: durante quanto tempo vamos ainda dizer: “existe tradução, mas é brasileira”.
E depois? De quem é a língua?
Ou estamos como o Saramago que, no Brasil, questionado por um ouvinte que objectava não lhe “perceber o sotaque” respondeu olimpicamente, lá do alto do seu Nobel made in Lanzarote, “O sotaque é seu. A língua é minha!”
“Toma, qu’é práprederes!” – como diz a catraiada quando o mânfio da escola esfola o joelhos.
Assim é que é, José! És cá dos meus! Nós é que sabemos falar, escrever e traduzir. Nas colónias, já se sabe, é leite de côco na praia e pontapé na gramática.


Todos nós, os mais crescidos, lemos (os que lemos) muita obra determinante pela primeira vez em tradução brasileira: desde o Tio Patinhas ao Ulisses de Joyce - embora desconfie que haja mais gente a dizer que leu o Ulisses do que assumir que leu o Patinhas, quando na verdade foi ao contrário.
E então? Desaprendemos com isso? Com essa língua que é nossa e que lhes emprestámos para eles traduzirem aquilo que não éramos capazes de ler no original ou de traduzir?
Houve, durante muito tempo, o mito de que as traduções brasileiras, por serem abundantes, eram descuidadas. É possível. E as nossas? Com meia dúzia (se tanto) de revisores decentes em Portugal, temos actualmente um lindo panorama de frases nonsense, calinadas de palmatória, edições inapresentáveis, etc.
E a língua é nossa.
Se calhar é por isso: como é nossa, podemos dar cabo dela.

E passo ao largo do fantasma do tímido acordo ortográfico de que muitos falam e poucos leram. Não vamos por aí - como agora se diz quando o GPS da conversa entra em veredas pouco iluminadas.

Bom, mas tudo isto é o folclore habitual nestas andanças.
O que eu sei é que está uma obra prima posta em sossego, a ganhar pó nas estantes com poucos a lembrarem-se dela e de repente “é minha, é minha!” Lá diz o ditado: a montanha mágica da minha vizinha é melhor do que a minha.

Adiante, que é feira de Mangualde.

O que eu queria dizer é que, por simples coincidência e antes de saber que se anunciava o regresso da obra de Mann aos hipermercados portugueses, comecei a ler (depois de também eu o ter tido a apanhar pó durante mais de 20 anos e depois de uma ou duas tentativas de leitura pouco empenhadas) comecei a ler, dizia, “A Montanha Mágica”. Li em dois dias as primeiras 100 páginas e não sei quando voltarei a ter o luxo de tempo para a retomar.
E, meus amigos, antes que comece tudo a dizer “aquilo é que é”, ponho-me já na primeira fila e, mesmo com a tradução “estrangeira” de Herbert Caro, asseguro que é um murro no estômago. Uma grande murraça de ficar amassado e pedir mais.
Tentarei voltar à carga, assim que puder. E dizer qualquer coisa, se conseguir.
Para já, deixo a posologia recomendada pelo próprio Thomas Mann.

“O que devo eu então dizer sobre o próprio livro (Montanha Mágica) e ainda por cima, como deve ser lido? O começo é uma exigência muito arrogante, a dizer que se deva lê-lo duas vezes. É claro que essa exigência é retirada imediatamente para o caso de que na primeira vez se tenha ficado entediado. A arte não deve ser nenhum trabalho escolar nem dificuldade, nenhuma ocupação contre coeur, mas sim deve alegrar, entreter e animar e aquele sobre o qual uma obra não exerce esse efeito então este deve deixar a obra de lado e voltar-se para outra. Mas quem chegou uma vez até o final com a “Montanha Mágica” então eu aconselho a lê-la mais uma vez, pois seu feitio particular, seu caráter como composição traz consigo que o prazer do leitor aumentará e se aprofundará da segunda vez, - como se deve já conhecer uma música para poder gozá-la de acordo. Não casualmente utilizei a palavra composição, a qual se costuma reservar à música. A música sempre influenciou meu trabalho formando fortemente meu estilo. Os poetas são, na maioria das vezes, outra coisa no fundo, eles são pintores ou gráficos ou escultores ou arquitetos deslocados ou outra coisa qualquer. Quanto a mim, eu pertenço aos músicos entre os poetas. O romance sempre foi para mim uma sinfonia, um trabalho de contraponto, um tecido de temas no qual as idéias têm o papel de motivos musicais.”
Extracto de Conferência apresentada por Thomas Mann em Maio de 1939 aos estudantes da Universidade de Princeton.
(Nota: não sei se deu para perceber, porque a tradução está em estrangeiro. Devia ter procurado em alemão para todos entendermos.)


Com isto, não há que enganar: podemos ler as duas traduções que não nos fará mal. Vem na literatura inclusa.

3 comentários:

Guenievre disse...

Fico muito contente com o regresso.è sempre bom ler histórias (estórias, as u wish) bem contadas. Este post era digníssimo de uma aula de língua. Para acabar com pretensões ignorantes.
Isabel

Rolando Palma disse...

Cheguei aqui por acaso, como aliás... deve ser a melhor maneira de se chegar a um blog; clica-se aqui, clica-se ali e sem dar por isso, acabamos a ler algo e ...pronto, lá vai mais um para os favoritos.
Gostei do que li. Não só pelo humor, indispensável tempero de qualquer página escrita, mas por concordar com uma certa visão das coisas, que me parece correcta.
A língua.
Imutável ?
Mas alguém falará ou escreverá ainda como Camões ?
E as traduções brasileiras ? Lembro-me dos tempos de universidade, em que constantemente tropeçava com termos técnicos que a "lingua brasileira" inventava, ao traduzir o inglês técnico. Na altura, achei pavoroso. Mas hoje, descubro desassombrado que o "português europeu" pratica as mesmas invenções, acrescentando termos à pressa ao dicionário quotidiano de todos nós. Mas mais... ainda fazemos mais. Gostamos de misturar "inglesices" nas nossas frases, na publicidade, no discurso político, no discurso económico. E assim, português europeu que se preze tem que saber o que significa "spread", "call-center", "ceo de uma empresa" ou "prime time".

Portanto, e se me permitem corrigir o nosso Nobel, eu diria:

Todos somos sotaque, o português não é de ninguém.

Chicapardoca disse...

Ai Rosinha, minha Rosinha, que bom ler-te, tudo tão pertinente e bem escrito e com tanto humor.