Elogio do rodovalho
(scophthalmus rhombus)
(scophthalmus rhombus)
Não gosto de animais. Nunca gostei, nem em criança. Quando digo isto, assim factualmente, há muito quem me olhe como se eu tivesse um problema grave e dele não tivesse a menor consciência. Alguns ainda insistem, numa derradeira dádiva de salvação da minha alma: “Mas então, em criança, nunca quiseste ter um animal, um qualquer?” Chegam a tentar-me com um dos mais arrepiantes atributos da língua portuguesa: “Tens a certeza de que nunca quiseste um fofinho?” Não, juro que nunca quis. Já devia ser suficientemente pessimista aos cinco anos para evitar complicações adicionais à minha vida. Acreditem que a minha cosmovisão na primeira infância não se coadunava com fofinhos...
E assim, toda a vida desejei secretamente que os animais não se aproximassem de mim, pois com eles vem um festival de pêlos, babas, unhadas, mordidelas amigas e cheiros intensos. Além disso, nunca sei o que lhes pode passar pela cabeça dos instintos e isso deixa-me tensa. Se for um humano chato ainda o podemos mandar à merda, mas já tentaram mandar à merda um bouldogue a despejar três litros de baba por segundo para cima de vocês? Fofinhos, não?...
Não gosto e não preciso fazer dez anos de psicanálise por causa disso. É possível não gostar, não é? É possível eu não sentir o apelo da selva e da fauna, tal como não sinto o do campo, nem o das ciências ocultas ou o do folclore.
Infelizmente, nem os animais me evitam quando tenho de me cruzar com eles, nem as ciências ocultas deixam de me bater à porta para me atormentar todos os dias. Já no respeitante ao campo e ao folclore a passagem do tempo foi-me atenuando o horror: digamos que, quanto a estes, passei do alerta vermelho ao laranja dégradé.
Bom, mas depois de me livrar desta irritação que é mais o manifesto de uma minoria amordaçada, a dos não-amigos-dos-animais, confesso que não é totalmente verdade que não goste de animais.
Na verdade, gosto de peixes. Gosto de peixes nos documentários, nos aquários e no meu prato. Deve ser a minha veia henriquina. Mas também é o anelo científico, sobretudo quando o peixe pousa no pratinho.
Até já escrevi n’anaturezadomal sobre trutas e ostras (bem sei que as ostras não são peixes, mas são primas, moram lá para as mesmas bandas aquáticas).
E depois os peixes têm grande tradição na nossa literatura, o que é sempre edificante. Podemos descortinar ocorrências semelhantes para outros animais, mas isso agora é irrelevante. Estou aqui para falar de peixes e o resto da fauna não me interessa.
Temos, como exemplo superlativo, o Sermão de Santo António aos Peixes do Padre António Vieira. Para além de vir agora mesmo a calhar com o cheiro da sardinha assada à porta, é um santo popular que, como a lotaria, é mais acarinhado pelo povo do que os eleitos para “estar” na política. Para estar e para ficar, já se vê.
O Santo António, para além de ser um santo moderno com o seu burel minimalista e o cabelo rapado como um webdesigner, está sempre a sorrir e traz um menino ao colo. Não, não me parece que seja por razões menos próprias. É um menino que acabou de cair e a quem ele está a fazer gli-gli porque não tem hirudoid ali à mão.
Bom, parece-me que isto está a descambar para a pieguice e quem diz pieguice, diz égloga e quem diz égloga diz reforma agrária. E eu não quero “ir por aí”, como agora se diz.
Quero é falar-vos de um peixe fabuloso que se chama rodovalho.
Logo o nome dele tem ressonâncias quase napoleónicas que nos poderiam levar longe. Mais modestamente, fiquemo-nos por algumas das suas admiráveis características.
O rodovalho é um peixe cujo corpo sofre transformações significativas, até adquirir o aspecto típico deste grupo de peixes, a sua família de peixes-chatos, ou melhor, achatados à força. Enquanto larva, tem o corpo simétrico, com um olho de cada lado. Depois, à medida que se desenvolve, o olho direito migra para o lado esquerdo do corpo, que sofre uma compressão lateral acentuada, até ficar plano. Estas modificações resultam numa extraordinária adaptação à vida no fundo do mar, onde permanece semi-enterrado na areia, com o lado esquerdo virado para cima. Aí, perfeitamente camuflado, consegue ver sem ser visto...
Acho este percurso de vida extraordinário! Já viram isto?! Um olho que migra para o outro hemisfério do corpo! Ainda nós nos queixamos das profundas alterações da adolescência nos humanos! Bolas, isto é que é mudar! Em miúdo terá um ângulo de visão de 180 graus e depois, foge-lhe um olho para o outro lado da cara (só esta ideia faz as delícias de qualquer fã do Carpenter), espalma-se-lhe o corpo e passa a ver a 360 graus, enterrado na areia, num misto de espião perfeito e poético, repousando sobre o lado esquerdo como o Carlos de Oliveira!
Passa a ter 360 perspectivas, 360 oportunidades de arranjar o bom almoço ou de escapar ao fisco. Passa a ver o mundo em écran panorâmico, com a vantagem de ninguém o conseguir ver! Como diriam os académicos da nossa praça: é notável!
Mas isto não acontece só com o rodovalho: é passatempo de família. Com o irmão pregado e os primos solha e linguado também assistimos ao mesmo passe de prestigiditação. Já viram as potencialidades narrativas e simbólicas desta família?!
Tudo isto, porque no último fim de semana fui desviada até à Costa Nova onde, para além de me mostrarem uma praia da moda, me levaram ao ensopado de rodovalho do restaurante da Praia do Tubarão. Este ensopado é, na verdade, uma caldeirada na forma mais tradicional portuguesa só com o sabor dos bons produtos: rodovalho do dia, bela batata farinhenta mas pouco cozida, louro, bom azeite que se está nas tintas para as divisões de classe dos azeites, sal do mar e não da fábrica e um pouco de pimenta em grão, vinda directamente da primeira viagem de Vasco da Gama. O rodovalho sabe a rodovalho e a batata está aferventada, como se diz na Beira Alta. Tudo tem um sabor honesto e não há complementos de importação como rúcula de Aljustrel ou amoras congeladas do Dubai.
Lutámos arduamente pelos últimos bocadinhos no fundo do tacho sempre a dizer “não quero mais” com ar de cobiça para o prato do mais retardatário.
Ainda hoje, cinco dias depois, no quase final de uma semana de penoso trabalho (chato, chato, de forma a espalmar-me, mas a não me deixar camuflar como o rodovalho), ainda hoje, se penso nesse ensopado, posso sentir-lhe os sabores variegados e com personalidade.
Junta-se esta à memória de uma simples pescada cozida comida no Cabo do Home, nas Rias Baixas galegas, há quatro anos. A minha memória é mais aquática do que feita de madalena literária e arrependida.
Eu não disse que gosto de peixes? E poderia continuar. Mas agora tenho que suspender, porque tenho que ir ajudar o meu filho num trabalho de última hora para a escola sobre (imaginem!) os Três Pastorinhos. Não o extinto bar, anterior à existência da minha criatura. Mas, os outros, essa enteléquia da alucinação que tanto tem feito pelo nosso nacionalismo mais vigoroso. Vou tentar algo como “Os Três Porquinhos”, perdão, “Os Três Pastorinhos – uma visão alternativa”. O que temos de fazer pela sobrevivência da espécie, arre!
À zé e ao luís que me levaram ao mar em maio e a comer rodovalho na praia mais perto de salamanca.
E assim, toda a vida desejei secretamente que os animais não se aproximassem de mim, pois com eles vem um festival de pêlos, babas, unhadas, mordidelas amigas e cheiros intensos. Além disso, nunca sei o que lhes pode passar pela cabeça dos instintos e isso deixa-me tensa. Se for um humano chato ainda o podemos mandar à merda, mas já tentaram mandar à merda um bouldogue a despejar três litros de baba por segundo para cima de vocês? Fofinhos, não?...
Não gosto e não preciso fazer dez anos de psicanálise por causa disso. É possível não gostar, não é? É possível eu não sentir o apelo da selva e da fauna, tal como não sinto o do campo, nem o das ciências ocultas ou o do folclore.
Infelizmente, nem os animais me evitam quando tenho de me cruzar com eles, nem as ciências ocultas deixam de me bater à porta para me atormentar todos os dias. Já no respeitante ao campo e ao folclore a passagem do tempo foi-me atenuando o horror: digamos que, quanto a estes, passei do alerta vermelho ao laranja dégradé.
Bom, mas depois de me livrar desta irritação que é mais o manifesto de uma minoria amordaçada, a dos não-amigos-dos-animais, confesso que não é totalmente verdade que não goste de animais.
Na verdade, gosto de peixes. Gosto de peixes nos documentários, nos aquários e no meu prato. Deve ser a minha veia henriquina. Mas também é o anelo científico, sobretudo quando o peixe pousa no pratinho.
Até já escrevi n’anaturezadomal sobre trutas e ostras (bem sei que as ostras não são peixes, mas são primas, moram lá para as mesmas bandas aquáticas).
E depois os peixes têm grande tradição na nossa literatura, o que é sempre edificante. Podemos descortinar ocorrências semelhantes para outros animais, mas isso agora é irrelevante. Estou aqui para falar de peixes e o resto da fauna não me interessa.
Temos, como exemplo superlativo, o Sermão de Santo António aos Peixes do Padre António Vieira. Para além de vir agora mesmo a calhar com o cheiro da sardinha assada à porta, é um santo popular que, como a lotaria, é mais acarinhado pelo povo do que os eleitos para “estar” na política. Para estar e para ficar, já se vê.
O Santo António, para além de ser um santo moderno com o seu burel minimalista e o cabelo rapado como um webdesigner, está sempre a sorrir e traz um menino ao colo. Não, não me parece que seja por razões menos próprias. É um menino que acabou de cair e a quem ele está a fazer gli-gli porque não tem hirudoid ali à mão.
Bom, parece-me que isto está a descambar para a pieguice e quem diz pieguice, diz égloga e quem diz égloga diz reforma agrária. E eu não quero “ir por aí”, como agora se diz.
Quero é falar-vos de um peixe fabuloso que se chama rodovalho.
Logo o nome dele tem ressonâncias quase napoleónicas que nos poderiam levar longe. Mais modestamente, fiquemo-nos por algumas das suas admiráveis características.
O rodovalho é um peixe cujo corpo sofre transformações significativas, até adquirir o aspecto típico deste grupo de peixes, a sua família de peixes-chatos, ou melhor, achatados à força. Enquanto larva, tem o corpo simétrico, com um olho de cada lado. Depois, à medida que se desenvolve, o olho direito migra para o lado esquerdo do corpo, que sofre uma compressão lateral acentuada, até ficar plano. Estas modificações resultam numa extraordinária adaptação à vida no fundo do mar, onde permanece semi-enterrado na areia, com o lado esquerdo virado para cima. Aí, perfeitamente camuflado, consegue ver sem ser visto...
Acho este percurso de vida extraordinário! Já viram isto?! Um olho que migra para o outro hemisfério do corpo! Ainda nós nos queixamos das profundas alterações da adolescência nos humanos! Bolas, isto é que é mudar! Em miúdo terá um ângulo de visão de 180 graus e depois, foge-lhe um olho para o outro lado da cara (só esta ideia faz as delícias de qualquer fã do Carpenter), espalma-se-lhe o corpo e passa a ver a 360 graus, enterrado na areia, num misto de espião perfeito e poético, repousando sobre o lado esquerdo como o Carlos de Oliveira!
Passa a ter 360 perspectivas, 360 oportunidades de arranjar o bom almoço ou de escapar ao fisco. Passa a ver o mundo em écran panorâmico, com a vantagem de ninguém o conseguir ver! Como diriam os académicos da nossa praça: é notável!
Mas isto não acontece só com o rodovalho: é passatempo de família. Com o irmão pregado e os primos solha e linguado também assistimos ao mesmo passe de prestigiditação. Já viram as potencialidades narrativas e simbólicas desta família?!
Tudo isto, porque no último fim de semana fui desviada até à Costa Nova onde, para além de me mostrarem uma praia da moda, me levaram ao ensopado de rodovalho do restaurante da Praia do Tubarão. Este ensopado é, na verdade, uma caldeirada na forma mais tradicional portuguesa só com o sabor dos bons produtos: rodovalho do dia, bela batata farinhenta mas pouco cozida, louro, bom azeite que se está nas tintas para as divisões de classe dos azeites, sal do mar e não da fábrica e um pouco de pimenta em grão, vinda directamente da primeira viagem de Vasco da Gama. O rodovalho sabe a rodovalho e a batata está aferventada, como se diz na Beira Alta. Tudo tem um sabor honesto e não há complementos de importação como rúcula de Aljustrel ou amoras congeladas do Dubai.
Lutámos arduamente pelos últimos bocadinhos no fundo do tacho sempre a dizer “não quero mais” com ar de cobiça para o prato do mais retardatário.
Ainda hoje, cinco dias depois, no quase final de uma semana de penoso trabalho (chato, chato, de forma a espalmar-me, mas a não me deixar camuflar como o rodovalho), ainda hoje, se penso nesse ensopado, posso sentir-lhe os sabores variegados e com personalidade.
Junta-se esta à memória de uma simples pescada cozida comida no Cabo do Home, nas Rias Baixas galegas, há quatro anos. A minha memória é mais aquática do que feita de madalena literária e arrependida.
Eu não disse que gosto de peixes? E poderia continuar. Mas agora tenho que suspender, porque tenho que ir ajudar o meu filho num trabalho de última hora para a escola sobre (imaginem!) os Três Pastorinhos. Não o extinto bar, anterior à existência da minha criatura. Mas, os outros, essa enteléquia da alucinação que tanto tem feito pelo nosso nacionalismo mais vigoroso. Vou tentar algo como “Os Três Porquinhos”, perdão, “Os Três Pastorinhos – uma visão alternativa”. O que temos de fazer pela sobrevivência da espécie, arre!
À zé e ao luís que me levaram ao mar em maio e a comer rodovalho na praia mais perto de salamanca.
13 comentários:
O prazer foi todo nosso! Foi um dia grandioso.
Eu, como sabes, também não tenho o mínimo de pachorra para animais domésticos; detesto babas, pelos, cheiro a cão e a chichi de gato, cócós na relva e nos passeios. E desde miúda que sempre foi assim. Fico logo tensica à vista de um cão (aquela coisa da imprevisibilidade do comportamento, que tão bem descreves...). O que sempre me fez mais confusão é comer com os bichos por perto. Não sei se me entendes, a mesma mãozinha que acabou de afagar o animal a passar-me directamente uma sandoca ou uma fatia de bolo...
Já tive situações de verdadeiro bloqueio alimentar.
E também sempre sofri esses olhares de reprovação como se isto fosse sinal de desumanidade ou fizesse de mim necessariamente uma má pessoa.
Abaixo os pets, cada macaco no seu galho, e viva o rodovalho.
Gostei mais da Montanha Mágica. Da tua, claro. A tua Montanha é mais mágica do que a minha.
é sempre assim: a montanha mágica da minha vizinha é melhor do que a minha.
o luís refere-se a uma parte da janta que eu não descrevo e em que sopesámos e praticamente lemos à desgarrada as duas edições em português d'A Montanha Mágica.
Uma sessão de literatura comparada...
É belo não gostar de animais. Eu também não gosto de pets e já tive grandes discussões com amigas minhas sobre essa relação especial que elas têm com o cãozinho ou o gatinho. A última discussão que tive terminou quando eu lhe disse que quem estava com "falta de carências" era ela e não o cãozinho, e por isso é que ela o vestia com aquelas malhas ridículas (que lhe fazem um calor do ca... ca...neco ao pobre animal, etc.
E agora o oxímoro, a contradição e a incongruência:
hoje gastei 18 euros num presente, "à savoir" um perfume para gatos. Aquilo que temos que fazer! É caso para dizer: aqui há gato!
Quanto ao rodovalho, espero poder prová-lo no verão na praia mais perto de Ayamonte.
Manel: aí não há gato, há gata.
Ou inistes na verificação empírica do Andrew Benson de que serias half gay?
Não era o Andrew Benson , mas sim o Mark Mason, que também era meio half gay, ou seja 1/4.
É melhor pararmos porque estamos a expor a vida de metade dos funcinários da Comunidade Europeia e, em vésperas de eleições, isso pode ser mal interpretado.
Já no dia seguinte, é diferente.
Continuamos na próxima semana.
bom. já percebi que, qualquer dia, comeremos sopa de tartaruga aí em casa.
cláudia (sem login)
Ahahahahah! Este texto é mesmo bom para mostrar à monga!
e aqui que ninguém nos ouve, a monga sabe que é monga?
També não gosto de animais domésticos, nem bicharocos suspeitos ou supostamente afáveis. Se calhar, não gostar de animais domésticos é mais comum do que pensas... Deviamos formar um clube.
E adoro caldeiradas! Espero pormenores de tão afamado restaurante (morada, etc, etc).
Isa
Estou cada vez mais sózinha! Eu gosto de cães, gatos, ursos, pinguins, focas, camelos, cavalos, ouriços cacheiros, porquinhos, coelhos, papagaios...e também de peixes! Mas, por favor, SEM ROUPA!
E no prato, delicio-me com peixe, qualquer um, desde que venha do mar... E rodovalho vindo do mar já é obra! Se calhar já só na praia mais próxima de salamanca...
Rosa, foi um gozo imenso ter lido este teu texto, mesmo que tenha sido muitos dias depois! AméliaJ
Muito bom. Mais um sócio para o clube. Eu adoro animais, mas é na BBC vida selvagem e tal. Vivi 4 anos numa casa onde diariamente chovia um rio de chichi e cocó de cão dos vizinhos idosos que faziam criação de cães e nunca os levavam à rua. Por causa da simpatia lusitana pelos animais de apartamento, nunca consegui resolver o problema. No dia em que recebemos a chave da nosssa casa nova, sai de lá em menos de 24 horas. Mudei a casa inteira com um clio. Mais tarde soube que uma família russa alugou esse apartamento e teve de fugir de lá por causa do mesmo canil doméstico....
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