8 de junho de 2009

Substantiva



Noite de eleições. Não gosto de falar de política, mas parece que hoje é obrigatório. Ao contrário do que ouvi da boca de muitos comentadores, não descortinei grandes novidades. O PS desceu como merece e como se previa, o PSD sobe e, nalguns locais fica na mesma, correspondendo à estagnação de ideias que por ele vai. O BE sobe como se calculava também enquanto o PCP e CDS ficam mais ao menos iguais a si próprios. Não vi grandes revelações, nem sequer na triste mas temível taxa de abstenção. Caminharemos até aos 80% de abstenção, ficando os restantes 20% reservadas aos militantes e dependentes dos partidos? Temos ainda mais oitenta e tal anos do nihilismo previsto. Lá chegaremos, se nos aplicarmos.

Agora o que se anuncia como novidade.
Rangel. Chegou a ouvir-se sobre ele — “nasceu uma estrela”! Que estrela?! Só se for uma estrelita como as dos cereais das crianças. Este rapaz, que parece que foi à máquina de lavar no programa errado e encolheu, demonstrou no seu discurso de vitória ser muito pouco tolerante e bastante “pesporrento” (palavra horrível que usou para caracterizar Sócrates). Por vontade da nova estrelita, o governo devia cessar funções nessa noite. As eleições são para as europeias, mas os resultados servem já para as legislativas (até se nos poupava uma campanha eleitoral, muita discursata e almoçarada e uma ida ao local de voto). Aliás, o logotipo da noite eleitoral na SIC era Portugal 09 e não Europa 09. Devo ter-me enganado nas datas com tanta eleição num ano.

Outra novidade são os três eurodeputados do Bloco que, por enquanto, continuam dois (que eu saiba). Esperemos que Rui Tavares não passe a ser Rui Talvez e vá estudar os terramotos para o eixo Estrasburgo/Luxemburgo/Bruxelas. Sinceramente espero que vá. E espero também que o Bloco que, dizem ter chegado à maioridade, aproveite para arrumar a casa e se livre do estalinismo entranhado que me impede, a mim e a muitos mais, de votar nele. E já agora que dê uma folga a Louçã (o Xico, para os iniciados) e se livre desse lado apadralhado e moralista, de dedo em riste que o aproxima tanto de Portas (do mano Paulo, não do compagnon de route Miguel). O problema é que, em grande parte, o Bloco é Louçã e Louçã é o Bloco. Já foi pior, mas ainda cheira muito a sacristia.

As não-novidades.
O PCP subiu. Continua a subir, imparável em cada eleição. Nem sei como é que ainda não tomou o poder. O índio Jerónimo permanece firme como uma rocha na sua reserva. Quando fala, ouve-se em fundo a cavalgada apache dos Shadows. Assim se vê a força do não sei o quê.

A rapaziada do CDS, esforçada e com a sua veia de forcado amador como diz o Luís Januário, continua a precisar de cortar o cabelo e a precisar de descolar daquela imagem de barraca de praias nortenhas. Precisavam de uma desintoxicação. De deixar urgentemente as camisas de riscas verticais. Nem que seja aos poucos: tentar as riscas horizontais, quem sabe se as diagonais, até que belo um dia possam chegar às bolinhas ou mesmo à camisa de uma só côr. A sério. O CDS, mesmo sendo PP, está sempre na iminência de acabar, porque para lá entrar é preciso ter pedigree e, como se não bastasse, usar farda, o que complica muito a vida ao povão que tem mais que fazer do que atender a uns betos instruídos que insistem em andar em feiras. Parece-me que o CDS se esvaziou sem nunca ter conseguido passar a PP. Por isso tem que trabalhar mais do que os outros. Vão por mim: deixar a camisita à risca ajudava.

O PS.
Nem sei que vos diga.
Têm o que estavam a pedir.
E eu até votei no avô cantigas. A campanha foi fraca, mas ele é mais rapaz para hemiciclos, anfiteatros, gabinetes, grupos de reflexão, enfim, corredores do Parlamento Europeu. Não nos há-de envergonhar. Afinal, a Ilda Figueiredo está lá há mais de uma década e o Paulo Casaca desde 1999. E quanto à notícia de o semanário O Sol a anunciar que Vital não tinha tido um único voto para presidente do Conselho Científico da Faculdade de Direito, conhecendo-se a Universidade de Coimbra, este facto, meus caros, só abona a favor do cabeça de lista do PS.

Agora outros aspectos que me dizem mais ao coração.
Ouvi ontem duas expressões que me encantaram: governabilidade e o vocábulo substantivo usado como adjectivo. Ah, isto para além do conceito de “esquerda moderna” que não é novo, mas não ouvia há muito. E dou-me frequentemente com bloquistas. 90% das pessoas com quem falo, quando saio à noite em Coimbra ou em Lisboa, são bloquistas. Mas nem todos são modernos. Deve ser por isso que não tenho ouvido a coisa. Por isso e porque, a partir de certa hora, não se consegue ouvir seja o que for.

Governabilidade! Por que raio desataram todos a questionar, de repente, se há ou se não há “condições de governabilidade”? Ouvi-o de pessoas de várias cores partidárias. Que é feito da palavra “governação”? Será esta demasiadamente simples, curta? Como, aquando da queda da ponte de Entre os Rios, desapareceu a palavra “acesso” e passou a dizer-se “acessibilidade” até à exaustão? Quando a coisa se complica acrescentam-se mais umas sílabas, malabarismo possível dada a plasticidade desta maravilhosa nossa língua portuguesa, sílabas normalmente inúteis, redundantes e inestéticas. Como nas famílias da nobreza que iam adicionando nomes à medida que empobreciam.
É que governabilidade é a qualidade do que é governável, o que insinua que se calhar isto (isto é Portugal, desde Eça) já nem sequer é governável e será melhor deitar tudo às malvas. Ou às Malvinas, já agora. Sempre se passeia.
Esta governabilidade, qualidade demasiadamente abstracta, aplicada às instituições portuguesas, deixa-me inquieta, acreditem. É como dizer que estou num grande “gostamento” em relação a esta ou àquela pessoa. A palavra existe, mas ninguém a quer ver aplicada a si, porque desconfiamos logo do amor de quem nos está a dizer isto. A não ser que seja o Herberto Helder ou algum dos seus confusos heterónimos.

Quanto à questão substantiva da política substantiva também tenho algo a dizer. Mais uma vez demonstra a grande qualidade da língua em que procuro escrever. Não deveria haver um único dia em que nós não devêssemos agradecer aos céus da filologia, da história da língua e dos muitos e bons escritores que tivemos, a complexidade, subtileza e acutilância da Língua Portuguesa. Agora que nem o clima se pode já recomendar, devíamos rezar todos os dias lendo uma página de um clássico da nossa língua entre cada refeição.
Estou a falar a sério.

Em português, como todos sabemos, é possível substantivar adjectivos, verbos e advérbios. É possível transformar tudo em substantivo: o comer e o coçar; um não bem firme; um azul perfeito, etc. Já a adjectivação de um substantivo é mais rara e envolve processos mais complexos de metaforizações e quejandos (sendo os quejandos mais ou menos complicados). Caso de “uma questão intestina” e por aí fora.
Nesta nova tendência da linguagem política, temos um substantivo que ainda para mais é a própria palavra "substantivo" a ser tomado, à antiga, como adjectivo. Esta conversão gramatical chega-nos nove anos depois da conversão do escudo em euro e eu acho que isto não é por acaso. Entrado na nossa língua por volta de 1540, o adjectivo “substantivo” designa, segundo o infalível Houaiss, “um ser real ou metafísico” que expressa a “substância”, “paradigma da natureza”, o que nos remete para questões altamente especulativas e simultaneamente próximas de nós.
Ou seja, agora que a substância, o pilim, o emprego, a vergonha rareiam, toca à procura do substantivo onde menos seria de esperar ele estar: no adjectivo.
Notem que entro aqui num terreno minado. Estou a misturar política e um domínio que é um barril de pólvora. A tal ponto que a sua designação tem estado na clandestinidade desde o final dos anos 70 (do século passado). Ainda agora a escrevo com um frisson de perigo a espreitar-me por cima do ombro. Estou a falar de GRAMÁTICA e estou a usar os velhos termos de substantivo e adjectivo. Acreditem que não é fácil.
E foi esta a principal lição que retirei da noite de eleições de ontem.
Vem aí a política substantiva. Pelas mãos dos vários partidos, está mesmo a chegar: todos se querem agarrar à política substantiva.
É o que nos vai valer para vencer a crise.

Um adverbiozito também talvez desse jeito.

Afinal este post não era sobre política.
Eu não disse que não gosto, nem sei, falar de política?


Post scriptum
: também vem aí a lei do cibercrime.

3 comentários:

cláudia disse...

bem, a continuar assim, ainda te convidam para participar num painel de comentadores, eheh, tantas são as eleições que se aproximam :)

(também achei o rangel pesporrento, cheio de superioridadezinhas, o que nada de bom augura...)

isabel c. disse...

Onde e quem promoveria esse painel? Decerto não os "jornalistas" portugueses, que não estariam dispostos a perder o controlo da situação e a embasbacar em cada comentário da Rosa, como bois a olhar para palácio... Não, que a Rosa -graças a Deus! - tem pouco jeito para se adaptar ao discurso adaptativo...

Luís disse...

Rosa, estou num grande gostamento por esta escrita. E pela escritora, claro.