20 de julho de 2009

Tudo o que não discutimos

Quando o conheci, era o Costa Afonso, sempre a piscar o olho ao espelho do Afonso Costa e arrastando ainda a aura juvenil de Deus Afonso que, dizia ele, lhe vinha do Liceu Camões. Eu tinha 18 anos e ele 26, diferença gigante para a idade e para a época, pouco importante, porque foi sempre um garoto até à auto-atribuída pré-reforma.

Anunciaram-me a sua chegada três dias antes, como estando mesmo, mesmo aí a rebentar. Perguntava eu ao amigo comum F. A. R.: “Mas afinal quando é que chega esse famigerado agitador?” E o F. A. R., do alto da sua barbicha de sátiro, com voz de trovão clandestino: “A qualquer momento, a qualquer momento... O Costinha pode sempre chegar a qualquer momento. Está aqui já no Boulevard Jourdan, a avançar implacável como um morteiro ideológico!”

Estávamos em Paris em 1977 e o Tozé (como passei a chamar-lhe nos anos 80) levava três dias a percorrer uma rua, parando em cada casa conhecida e detendo-se a farejar as possibilidades das não conhecidas em mini-comícios e raids de agit-prop onde podia e calhava.

Pouco depois de ele finalmente aparecer, já estávamos a conversar pela noite dentro (as célebres conversas das 5 da manhã, que levam a lado nenhum ou a resoluções tão, tão urgentes e devastadoras que ficam adiadas sine die), formámos o comité de clandestinos de casa André de Gouveia, colando folhas A4 nas paredes a denunciar o mau funcionamento do aquecimento, a arrogância do director que não nos cumprimentava com a deferência a que nós achávamos ter direito e espalhávamos pelos corredores notícias geralmente um pouco exageradas de quem tinha dormido ou andava a tentar dormir com quem. Com esta actividade desgastante, acrescida ao debate de jornais (mais discutidos do que lidos) e à contínua procura de tudo o que nos pusesse a par do avanço da teoria (era A Teoria, como dizíamos), invariavelmente, às 2 da manhã dava-nos a fome e íamos então às cozinhas colectivas usar os alimentos dos outros para grandes pratadas de esparguete com o que havia. Algum residente aplicado que viesse à cozinha durante a noite em busca do calmante copo de leite tardio, acabava com frequência sentado à mesa em debates frenéticos até de madrugada, não sem ter sido convidado para comer os seus próprios produtos como viria a constatar no vazio dos armários no dia seguinte. Mas ninguém se zangava porque tinha sido boa noitada, boa conversa e boa esparguetada.

Começámos aí uma longa e agitada amizade de 33 anos, por vezes interrompida pelas ausências e suspensões um do outro. Foi meu cunhado durante 5 anos e assistiu e determinou muitos dos meus passos e decisões de vida. Partilhámos casas, viagens, assistimos a mortes, partidas, revelações, nascimentos, traições e desencontros, ao que se pode assistir de perto e de longe durante 33 anos em caminhos cruzados e paralelos.

Há poucos dias, recebi um telefonema confuso e triste a dizer que o Tozé tinha chegado ao fim da linha.

Fui à capela dos Jerónimos e estava uma pequena multidão. Havia mais dois mortos numa cave sufocante e apinhada. Aos poucos percebemos quem velava quem. As histórias misturavam-se e os grupos confundiam-se. Todos aqueles com quem falei se lembravam bem de como o tinham conhecido. Fora num dia que trazia uma história agarrada e particular para cada um de nós. A Amélia lembrava-se de que estava um dia no café Pão de Açúcar, na Guerra Junqueiro, e de repente viu um rapaz com ar de reguila saltar para cima de uma mesa e gritar de braços no ar: “As famílias só servem para defender o pito das meninas!”

Em 1969 isto era uma dura verdade. E a Amélia ficou logo ali ligada àquele catraio que, a brincar, a deixara a pensar numa coisa séria.

Agora estava ali transformado em estátua, suspenso na eternidade à espera de vez para voltar a falar.

Aparentemente, não fez nada. Não teve profissão, para além de umas incursões catastróficas nos mundos académico e no dos negócios, não publicou o livro insistentemente proclamado como um meteoro literário e que muitos lemos em fotocópias espalhadas por vários continentes. Mas não deixou ninguém indiferente e não teve um dia de descanso. E fez a Mafalda que fez a Olívia. Era, como ele próprio dizia, um técnico de idéias gerais. Ficaram muitas por debater e esmiuçar.

Dele se poderia dizer o que Nietzsche dizia de si próprio: “Eu não sou um homem, sou dinamite!”

Agora está ali no canteiro numero 3144 no cimo da Calçada do Galvão, depois da Igreja, que muito a propósito se chama, da Memória.

Ali está aquele que se apresentava como “euro-esquerdista liberal, psicótico e libertino.”

Entretanto, as meninas defendem ou oferecem o pito a quem lhes interessa, como entendem ou a quem o trabalha. Esperemos que sim.

3 comentários:

Carlos disse...

Nunca deixei um comentário na caixa de um blogue. Fiquei comovido com as tuas palavras tão verdadeiras sobre o Tozé e sobre todos nós. É verdade que ninguém pode esquecer o dia em que conheceu o Tozé. Nunca conheci ninguém tão trepidantemente alerta. Tão difícil de acreditar, de tão aventureiramente (ficcionalmente) vivo.
Carlos

Anónimo disse...

Olá Rosa. Pois é. Ninguém se esquece de como conheceu o TóZé...ninguém vai esquecer de como ele desapareceu...Gostei muito desse teu retrato dele. Amélia Júlio

Anónimo disse...

Olá
Foi bom encontar-te aqui, já estive a espreitar todos os teus escritos, que são bem divertidos e elucidativos.....
até breve, Margarida