Sexta-feira à noite olho para um postal comprado em Florença em 1997. Repousa há anos numa das estantes do meu escritório: “Incontro di Dante con Beatrice” de Henry Holliday. Não há como uma sexta-feira à noite para ficar a pasmar para um pré-rafaelista.
1. Dante afirmava ter visto Beatriz pela primeira vez aos nove anos e nunca mais se ter esquecido dessa imagem. Deve ser a isto que se chama uma imagem pregnante. Prenhe mesmo antes do tempo da floração biológica da prenhez. A imagem pregnante é uma relação de ajuste, de reconhecimento, em que se vive suspenso numa espécie de espera. Dante esperou, não nove meses, mas nove anos para rever Beatriz. O número nove e seus múltiplos impregnam a Vita Nuova, povoando-a de segredos. O amor por Beatriz estava repassado de memória, morte e segredo.
A representação de Henry Holliday mistura um possível segundo encontro aos dezoito anos com o impacto da epifania que se teria dado miticamente aos nove, sobrepondo os dois momentos. Beatriz, de vestes claras, passa, olhando em frente, compenetrada em não saudar Dante que, desacordado pela aparição, tenta esconder o seu amor, cortejando falsamente a rapariga de vestes fulvas e formas bem menos angelicais do que as de Beatriz.
Dante leva a mão ao peito, sublinhando o embate da revelação. Esboça o gesto do animal ferido, mas a picada da dor é bem mais profunda do que o rasgão físico da lança invisível. Naquele instante, deixa de ser homem e passa a oráculo de si mesmo. E vê, fora de si, o ideal do eu. Pensará talvez: eu sou mais um, eu também estou ali, noutro, não estou mais contido em mim, prolongo-me para um outro em que me reconheço, mas que não domino.
Dominus era o senhor da domus, da casa. O não-domínio é a expulsão da casa. Da casa do ser, doravante semi-ocupada por outro que também sou eu.
Dante é fulminado pelo prazer e desprazer que esta revelação lhe provoca. É um derrame do ser que muda para sempre a sua percepção da vida e do eu. É a descoberta da introspecção. Dante inventou o amor e a introspecção. De certa forma, inventou a psicanálise — uma psicanálise renascentista. De resto, analisar-se/ser analisado é, de alguma forma, renascer.
Descobriu que o amor é o imaginário, uma película translúcida que transmite luz, que se deixa atravessar por ela, mas, no mesmo acto, oculta, confunde e ofusca.
Descobriu que o nosso olhar é uma cortina sobre o mundo. A revelação é de tal ordem que dissolve o eu anterior e deixa-o nu, descarnado. Pronto a ser preenchido pela imagem de Beatriz.
2. Dante morreu com 56 anos e Beatriz com 24. Há quem diga que apenas se encontraram aos nove anos e que Dante nunca teria chegado a falar com ela. Como é amar sem conhecer a voz? Sem acesso ao ruído do outro? A ter acontecido assim, o poeta teria vivido durante 47 anos fixado numa imagem fugidia que por ele passara no final da infância. Vivia do oxigénio desaparecido há muito. Vivia da ideia de oxigénio.
Há quem sustente que Beatriz nunca existiu. Mas também é possível que Dante a tenha conhecido fugazmente aos 18 anos. Seria Beatrice Portinari, filha do banqueiro Folco Portinari, mais tarde prosaicamente casada com outro banqueiro, esta amada ideal que atravessa o Arno pela ponte Santa Trinità, entrando muda e saindo calada de cena, aparentemente sem outro rumor do corpo que não seja o do esvoaçar do vestido florentino.
Noutra versão, criada pelo próprio Dante, Beatriz tê-lo-ia saudado e por esse acto, convertido para sempre a um amor auto-alimentado de ideal para uns, de delírio para outros.
A pintura de Henry Holliday parece o flash de uma passagem de modelos. O modo de caminhar, o segurar das vestes e expor os pregueados de tecidos em cores que não podiam existir no final do século XIII, estes segundos míticos para o amor ocidental poderiam ser o cartaz da nova colecção Primavera/Verão 1283. Nome da colecção: Dolce Stil Nuovo.
3. Onde é que nós já vimos isto?
Todos os dias, em qualquer transporte público e em qualquer série de televisão mais ou menos apatetada.
Hoje, graças a séculos de mal entendidos e de guerra dos sexos, graças aos efeitos de muita análise mesmo entre os que a rejeitam, podemos compreender mais facilmente estes dois apaixonados. Ele fica atordoado com a força que subitamente o invade e que não quer, não pode ou não sabe mostrar e disfarça mal, namoriscando as outras. Ela, naturalmente, não gosta, e não lhe dá o que hoje chamamos, na política e no amor, uma nova oportunidade.
Se esta história nos dá jeito na literatura, mitologia, psicanálise e na cotação na bolsa (há pelo menos dois banqueiros neste enredo idílico), na realidade, as coisas não foram bem assim.
Na “vida real”, Dante casou com Gemma Donati de quem teve quatro filhos e sobre quem nunca escreveu uma só palavra. A pobre Gemma teve de aguentar toda a vida a presença de um fantasma, mais poderoso do que o da Rebecca de du Maurier/Hitchcock.
Apesar da sua gigantesca capacidade de idealização, Dante não deixava o pragmatismo por mãos alheias. Teve uma carreira política ainda que toldada por grandes dissabores (o que o fez morrer no exílio, em Ravena – não um exílio dourado, mas um exílio bizantino, um exílio aos quadradinhos), participou na vida militar (foi amigo de Carlos Martel, esse herói da não islamização da europa) e era grande defensor dos sindicatos nascentes (as Guildas). De facto, tornou-se médico e farmacêutico, não para exercer estas nobres ainda que, à época, insipientes profissões, mas para se tornar sindicalista dos boticários e, através do sindicato, aceder à vida política. Onde é que nós já vimos isto? Como é que aquela península era, nessa data distante, tão moderna e hoje serve tão mal a democracia? Tudo isto são temas para não nos ajudarem a compreender a península itálica.
Para além disso, Dante desperta, de imediato, a nossa instintiva simpatia por se ter recusado pagar as multas pesadas que o governo florentino (muito a mando da intrigalhada papal que ele sempre combateu) lhe impôs por delito de opinião política. Proscrito e desiludido, chegou a declarar solenemente que pertencia a um partido com um único membro.
Tudo isto o torna bastante mais humano e vulnerável a nossos olhos e pode ajudar a compreender a sua visão dantesca do mundo que, não raramente, coincide com a nossa quando nos pomos a pensar com alguma intensidade no que nos rodeia, sem estarmos necessariamente nas margens do Arno.
4. No Natal de 2008, ao passearmos no bairro anarquista de Exárcheia, muito menos esventrado do que mostravam os telejornais e bem mais interessante do que a restante Atenas moderna, dizia-me o meu amigo Ignácio:
— Falam desta coisa da globalização como um fenómeno mais ou menos recente, mas...
— Recente dos descobrimentos para cá, queres tu dizer — interrompo eu, armada em esclarecida.
— Não, nina, é muito mais antigo! Olha, em termos culturais, acho que... acho mesmo que começou com o Dolce Stil Nuovo. É isso!, o Dolce Stil Nuovo já era a globalização cultural, não achas? Começaram todos a escrever e a pensar e a amar como o Dante e os amigos. E nunca mais parou. É claro que ele não descobriu a pólvora. Ele e os amigos. Já tínhamos tido antes os trovadores, os nosso trovadores, com ou sem provençais que só se apaixonavam na Primavera, como diz o vosso Dom Denis. Já havia amores místicos e tomismos e platonismos e essa coisada toda. Mas esses gajos do Dolce Stil Nuovo é que tiveram o golpe de génio de pegar nessas tendências todas, dar-lhes outras roupas e exportar para o resto da Europa. E pronto, lançaram um gosto, um modelo, com formas muito diferentes consoante as épocas, mas que nunca mais parou, já reparaste? É como a moda, é perceber o que anda no ar e dar-lhe uma forma. Aí é que começou a globalização. Foi com o Dolce Stil Nuovo, garanto-te eu.
Voltávamos pela praça Sintagma. Num canto em obras, em vez do habitual “Men at Work” ou equivalente indígena, lemos e rimos com a indicação “Metamorfosis”.
E continuámos a divagar a partir deste Dante mistificador, mas tão sagaz que dele a Erza Pound não deixou de se amar, escrever e ver o ser amado de modo a que não houvesse algum fio preso a essa tarde à beira do Arno com ou sem saudação de Beatriz.
Se aqui estivesse o meu amigo Tozé remataria com a palavra de ordem: “A luta continua: Beatriz toda nua!”
A representação de Henry Holliday mistura um possível segundo encontro aos dezoito anos com o impacto da epifania que se teria dado miticamente aos nove, sobrepondo os dois momentos. Beatriz, de vestes claras, passa, olhando em frente, compenetrada em não saudar Dante que, desacordado pela aparição, tenta esconder o seu amor, cortejando falsamente a rapariga de vestes fulvas e formas bem menos angelicais do que as de Beatriz.
Dante leva a mão ao peito, sublinhando o embate da revelação. Esboça o gesto do animal ferido, mas a picada da dor é bem mais profunda do que o rasgão físico da lança invisível. Naquele instante, deixa de ser homem e passa a oráculo de si mesmo. E vê, fora de si, o ideal do eu. Pensará talvez: eu sou mais um, eu também estou ali, noutro, não estou mais contido em mim, prolongo-me para um outro em que me reconheço, mas que não domino.
Dominus era o senhor da domus, da casa. O não-domínio é a expulsão da casa. Da casa do ser, doravante semi-ocupada por outro que também sou eu.
Dante é fulminado pelo prazer e desprazer que esta revelação lhe provoca. É um derrame do ser que muda para sempre a sua percepção da vida e do eu. É a descoberta da introspecção. Dante inventou o amor e a introspecção. De certa forma, inventou a psicanálise — uma psicanálise renascentista. De resto, analisar-se/ser analisado é, de alguma forma, renascer.
Descobriu que o amor é o imaginário, uma película translúcida que transmite luz, que se deixa atravessar por ela, mas, no mesmo acto, oculta, confunde e ofusca.
Descobriu que o nosso olhar é uma cortina sobre o mundo. A revelação é de tal ordem que dissolve o eu anterior e deixa-o nu, descarnado. Pronto a ser preenchido pela imagem de Beatriz.
2. Dante morreu com 56 anos e Beatriz com 24. Há quem diga que apenas se encontraram aos nove anos e que Dante nunca teria chegado a falar com ela. Como é amar sem conhecer a voz? Sem acesso ao ruído do outro? A ter acontecido assim, o poeta teria vivido durante 47 anos fixado numa imagem fugidia que por ele passara no final da infância. Vivia do oxigénio desaparecido há muito. Vivia da ideia de oxigénio.
Há quem sustente que Beatriz nunca existiu. Mas também é possível que Dante a tenha conhecido fugazmente aos 18 anos. Seria Beatrice Portinari, filha do banqueiro Folco Portinari, mais tarde prosaicamente casada com outro banqueiro, esta amada ideal que atravessa o Arno pela ponte Santa Trinità, entrando muda e saindo calada de cena, aparentemente sem outro rumor do corpo que não seja o do esvoaçar do vestido florentino.
Noutra versão, criada pelo próprio Dante, Beatriz tê-lo-ia saudado e por esse acto, convertido para sempre a um amor auto-alimentado de ideal para uns, de delírio para outros.
A pintura de Henry Holliday parece o flash de uma passagem de modelos. O modo de caminhar, o segurar das vestes e expor os pregueados de tecidos em cores que não podiam existir no final do século XIII, estes segundos míticos para o amor ocidental poderiam ser o cartaz da nova colecção Primavera/Verão 1283. Nome da colecção: Dolce Stil Nuovo.
3. Onde é que nós já vimos isto?
Todos os dias, em qualquer transporte público e em qualquer série de televisão mais ou menos apatetada.
Hoje, graças a séculos de mal entendidos e de guerra dos sexos, graças aos efeitos de muita análise mesmo entre os que a rejeitam, podemos compreender mais facilmente estes dois apaixonados. Ele fica atordoado com a força que subitamente o invade e que não quer, não pode ou não sabe mostrar e disfarça mal, namoriscando as outras. Ela, naturalmente, não gosta, e não lhe dá o que hoje chamamos, na política e no amor, uma nova oportunidade.
Se esta história nos dá jeito na literatura, mitologia, psicanálise e na cotação na bolsa (há pelo menos dois banqueiros neste enredo idílico), na realidade, as coisas não foram bem assim.
Na “vida real”, Dante casou com Gemma Donati de quem teve quatro filhos e sobre quem nunca escreveu uma só palavra. A pobre Gemma teve de aguentar toda a vida a presença de um fantasma, mais poderoso do que o da Rebecca de du Maurier/Hitchcock.
Apesar da sua gigantesca capacidade de idealização, Dante não deixava o pragmatismo por mãos alheias. Teve uma carreira política ainda que toldada por grandes dissabores (o que o fez morrer no exílio, em Ravena – não um exílio dourado, mas um exílio bizantino, um exílio aos quadradinhos), participou na vida militar (foi amigo de Carlos Martel, esse herói da não islamização da europa) e era grande defensor dos sindicatos nascentes (as Guildas). De facto, tornou-se médico e farmacêutico, não para exercer estas nobres ainda que, à época, insipientes profissões, mas para se tornar sindicalista dos boticários e, através do sindicato, aceder à vida política. Onde é que nós já vimos isto? Como é que aquela península era, nessa data distante, tão moderna e hoje serve tão mal a democracia? Tudo isto são temas para não nos ajudarem a compreender a península itálica.
Para além disso, Dante desperta, de imediato, a nossa instintiva simpatia por se ter recusado pagar as multas pesadas que o governo florentino (muito a mando da intrigalhada papal que ele sempre combateu) lhe impôs por delito de opinião política. Proscrito e desiludido, chegou a declarar solenemente que pertencia a um partido com um único membro.
Tudo isto o torna bastante mais humano e vulnerável a nossos olhos e pode ajudar a compreender a sua visão dantesca do mundo que, não raramente, coincide com a nossa quando nos pomos a pensar com alguma intensidade no que nos rodeia, sem estarmos necessariamente nas margens do Arno.
4. No Natal de 2008, ao passearmos no bairro anarquista de Exárcheia, muito menos esventrado do que mostravam os telejornais e bem mais interessante do que a restante Atenas moderna, dizia-me o meu amigo Ignácio:
— Falam desta coisa da globalização como um fenómeno mais ou menos recente, mas...
— Recente dos descobrimentos para cá, queres tu dizer — interrompo eu, armada em esclarecida.
— Não, nina, é muito mais antigo! Olha, em termos culturais, acho que... acho mesmo que começou com o Dolce Stil Nuovo. É isso!, o Dolce Stil Nuovo já era a globalização cultural, não achas? Começaram todos a escrever e a pensar e a amar como o Dante e os amigos. E nunca mais parou. É claro que ele não descobriu a pólvora. Ele e os amigos. Já tínhamos tido antes os trovadores, os nosso trovadores, com ou sem provençais que só se apaixonavam na Primavera, como diz o vosso Dom Denis. Já havia amores místicos e tomismos e platonismos e essa coisada toda. Mas esses gajos do Dolce Stil Nuovo é que tiveram o golpe de génio de pegar nessas tendências todas, dar-lhes outras roupas e exportar para o resto da Europa. E pronto, lançaram um gosto, um modelo, com formas muito diferentes consoante as épocas, mas que nunca mais parou, já reparaste? É como a moda, é perceber o que anda no ar e dar-lhe uma forma. Aí é que começou a globalização. Foi com o Dolce Stil Nuovo, garanto-te eu.
Voltávamos pela praça Sintagma. Num canto em obras, em vez do habitual “Men at Work” ou equivalente indígena, lemos e rimos com a indicação “Metamorfosis”.
E continuámos a divagar a partir deste Dante mistificador, mas tão sagaz que dele a Erza Pound não deixou de se amar, escrever e ver o ser amado de modo a que não houvesse algum fio preso a essa tarde à beira do Arno com ou sem saudação de Beatriz.
Se aqui estivesse o meu amigo Tozé remataria com a palavra de ordem: “A luta continua: Beatriz toda nua!”