3 de outubro de 2009

Impressões do crepúsculo de viagem outonal com temperaturas de verão.


© ignacio, rosa a tentar perceber o que é o azul meditarrânico (ainda não foi desta)

Como disse há uma semana e muitos acontecimentos domésticos atrás, regressei.
Está bem de ler.
Mas ainda não tive uma aberta, na chuvada do quotidiano, para alinhar um telegrama de viagem.
Aqui vai.

Boa parte dos franceses continua tão acolhedora como um pit bull desgovernado.
Cannes é tão deslumbrante como Vila Nova de Famalicão. Certo, tem o Carlton com todas as janelas prestes a serem escancaradas por belezas cinematográficas em gritos dramáticos e corneillianos contra um perfume egoísta e masculino.
Não pude deixar de recordar essas furiosas beldades no abre e fecha das portadas de madeira bradando para o céu plúmbeo os versos de Pierre Corneille:

"Ô rage ! ô désespoir ! [...]
N'ai-je donc tant vécu que pour cette infamie ?"

(Le Cid, acte I, scène V, Pierre Corneille)

Mesmo eu, que tenho reduzida paciência para a actual cultura francesa (quando digo actual, digo de há trinta anos a esta parte), mesmo eu, cuja pele fica eriçada só de ler as primeiras três linhas de grande parte dos romances franceses dos últimos anos e que, com excepção do cinema, da baguette (a verdadeira, a que se come lá) e um ou outro perfume, pouco mais recebo de bom grado do hexágono gaulês, mesmo eu, repito, fiquei momentaneamente comovida diante do Carlton, não tanto por aquilo que ali via sob um sol inclemente e um cenário barulhento, atulhado de guindastes, gruas e britadeiras implacáveis, mas porque, graças à minha pouco recomendável capacidade quase ilimitada de ver televisão, pude recordar esse outro Carlton, versão Channel/Corneille.

Mas voltando à Cannes de hoje (ou da semana passada).
À parte o Carlton (e ainda assim por interposta memória publicitária), Cannes é tão interessante como Vila Nova de Famalicão, uma das urbes mais horrendas deste nosso quadrado. E se Cannes tem o Carlton e uma espécie de pavilhão desportivo onde passam filmes durante 15 dias por ano, Famalicão tem, por perto, a Casa de Camilo e, desculpem lá, mas Camilo vale bem mais do que uma escadaria minorca de vulgar betão com um tapete vermelho a disfarçar o ridículo tão a pedir a vergasta camiliana.
Em Cannes come-se bem, mas em Famalicão também, embora seja outro género. Em Cannes é mais farcis, em Famalicão é mais de entulhar, de nos farcir a nós. Mas, se virmos bem, farcir pode ser traduzido por entulhar. Varia é o momento e processo de entulhanço.
Ou seja, são dois locais onde o que é há a fazer é comer e ler ou ver cinema – o que não é nada mau e pode até ser suficiente para algumas vidas. Cannes tem praia, mas como sabem o mediterrâneo (pelo menos o ocidental) não domina bem o conceito de praia: é mais um lago tépido (o que me agrada muito), frequentemente sem areia (o que não me agrada nada) e tão povoado por gente bem despida como os passeios de Calcutá o são por mendigos.
Cannes, com esta vaguíssima noção de praia e o desfile sazonal de estrelas de celulóide, rivaliza com Famalicão com os seus arredores românticos, feiras e romarias e muito foguete a estralejar no ar. Sem dúvida, Cannes tem um um pouco mais de mármore e glamour, mas Camilo ofusca num ápice duas os três Meryl Streeps, mesmo que em Famalicão o strip seja muito eufemístico (calculo, mas nunca se sabe – só vendo, literalmente).
Pronto, está dito. Não gostei de Cannes. Tal como não gosto de Famalicão. Devo dizer que passei três horas da minha vida em cada uma destas, digamos, autarquias. Por isso sei do que falo. É uma opinião isenta, de quem não chegou a criar laços com o local.

E não me perguntarão vocês (já tenho calo nisto dos silêncios dos leitores): “E então a viagem foi má? Foi só isso?”
Não, à parte isto e mais um ou outro confronto com a mentalidade gaulesa, a viagem correu até muito bem, mas por agora o relato tem de ficar por aqui. Tenho de ir enganar outros.
Comecei pela parte da maledicência para descontrair. Sigo o conselho pouco teutónico da minha muito teutónica amiga Kirsten Brandt “Dizer mal faz bem.”

Por agora, deixo-vos com amizade (lembro-me tantas vezes do engenheiro Sousa Veloso que celebrizou esta saudação!) e com algumas fotos representativas do pitoresco da região. As fotos são da lavra do meu amigo Ignácio, meu companheiro habitual de viagem e com quem mantenho uma conjugalidade perfeita já que vivemos a 1200 km de distância.

4 comentários:

mariantonia disse...

Então e os daft punk, hem? Esqueceste os daft punk.

rosa disse...

esqueci-me de umas tantas coisitas, mas é de propósito por eles serem tão chatos.
um deles até dizia "Há pessoas tão maçadoras que nos fazem perder um dia inteiro em cinco minutos."
era finório como uma raposa e bem conhecia o seu povo. era Renard, Jules Renard.
ele lá sabia.

mariantonia disse...

Os daft punk é fundamental.É a base; é a basezinha!

rosa disse...

nem de propósito. na literatura de fim de semana, outro francês (que alterna entre o grande chato e o escritor e sobretudo o teórico entusiasmante - tem dias...):
"Nem sempre sou da minha opinião."
Paul Valéry