— Olá! Então? Novidades por aí? Como é que vai essa montagem de cozinha?
— Nem me fales! Isso é um assunto muito longo e agora estou com pressa, que esta noite ainda aqui tenho muito que lhe dar.
— Mas então, o que é que se passa? O carpinteiro desaparecido já deu à costa ou ainda anda a monte?
— Já apareceu. O problema agora não é esse. A questão agora é que combinamos, mas ele está sempre a desmarcar, ora porque choveu, ora porque vai chover, ora porque não confia no último boletim meteorológico. O gajo tem imensos problemas com a meteorologia, tu sabes lá!...
— Mas... não estou a perceber!... O que é que a meteorologia tem a ver com a montagem de uma cozinha, se é tudo trabalho de interior?
— Aí é que está o complicado da história. Ai... ai... Vou então tentar fazer-te um resumo.
[Pausa]
— Uma pessoa pensa que pensa em tudo e nunca pensa em tudo.
— Mau!... Não me digas que vai ser uma história como a da exposição que fizeste para o tribunal e que deu tão mau resultado!...
— Qual delas?!
— Aquela em que tu começavas o texto por “Estava-se num Outono que se advinhava muito chuvoso...”
— Ah, sim, sim. Não era uma exposição, era a contestação ao processo que uma empresa me colocou por eu lhes exigir que me pagassem o que me deviam. E tive de ser eu a fazê-la, porque na véspera descubro que o advogado não tinha feito nada. Pois, essa do Outono... Que depois o juiz perguntava no relambório da matéria de facto: “Estava-se num Outono que se advinhava muito chuvoso?” e eu estava a ver que pra responder tinha de ir arranjar os gráficos pluviométricos desse ano... Ah, pois, essa história... Não. Não, desta vez é mesmo uma reflexão mais inquietante.
— Porra, que tu não consegues mudar um móvel sem angústias existenciais!
— Não é nada disso! Já vais perceber. A questão é com o isolamento térmico.
— Mas então não era só montar a cozinha?!
— Nãão! Já que vou a montar a cozinha cá em baixo e, antes disso, quero fazer o isolamento térmico lá em cima, porque aquilo no sótão é muito quente no verão e muito frio no inverno. E então pensei que devia aproveitar ter agora um mestre de obras para tratar disso. Pralém de que tem mesmo de se começar por aí. Mas o grande problema é que material usar no isolamento. Eu tinha pensado usar lã de rocha mais pladur, mas ele não concorda, quer pôr uma coisa que se chama roofmate, que ele acha que é melhor. E discutimos uma série de vezes por causa disso. Até que eu, de repente, páro para pensar: “Espera lá, por que é que eu estou práqui a insistir tanto na lã de rocha?” E então vou à net e verifico que a lã de rocha é cancerígena! E penso: afinal o homem tem razão! Já agora, deixa cá ver como é isto do roofmate. E descubro que o roofmate é inflamável, caraças!
— Ena, pá!... Ena pá 3000!!...
— Pois é, já estás a ver a coisa, não é? Estás a ver como é que eu fiquei, práli parado uns dias a pensar: “O que é que é pior? Morrer com um cancro ou morrer queimado?” Estás-me a ver, não é? É do caraças, uma pessoa apanhar-se a pensar assim!... Até que decidi: é pouco provável que alguém vá atirar um fósforo aceso para o tecto e que ainda por cima o fósforo se vá infiltrar entre as telhas e a placa. Se bem que, se a Maria Otília ainda aqui vivesse, não era de descartar tal hipótese. Pois se ela furou a parede de um túnel com o automóvel e andou anos a pagar o túnel à Confederação Helvética!... Bom, mas agora, enquanto ela andar entretida não sei por onde com os Palops, não vem práqui lançar chamas pró ar. De maneira, que lá dei razão ao homem e optei pelo roofmate.
— Então já está! Pelo menos essa já decidiste.
— Pois, mas a aplicação do roofmate implica que se levantem telhas. Nem quero pensar no que vai ser com os vizinhos quando eu disser que vou mexer no telhado, ai Jesus!... Bom, mas agora já percebeste porque é que a meteorologia tem implicações na prossecução da coisa, na montagem da cozinha.
— Mas, ó Pedrinho, isso assim é uma chatice! Tu já viste que já começou o Outono, que, por sinal, se advinha muito chuvoso? Então, agora é que tu vais mexer no telhado?!...
— Pois, mas o é que tu queres?... Isto estava programado desde Julho, mas têm-se metido umas coisas nas outras e chegamos a fim de Outubro. Estou feito, estou feito, estou aqui ensarilhado num nó que me enreda cada vez mais!...
— Então, mas por que é que tu não tratas de montar a cozinha e deixas o isolamento prá Primavera? Tens a casa cheia de materiais e uma cozinha sem funcionar: isso assim não dá!
— Porque o carpinteiro não pode vir pôr o parquet, antes do tecto arranjado, porque depois caem coisas, materiais, ferramentas e coisas assim e estragam o soalho, estragam-lhe o trabalho.
— Mas vinha agora montar só mesmo o essencial para a cozinha funcionar e depois faziam o resto, começando do tecto para o chão. Isso não é possível?
— Ser possível é, mas o carpinteiro diz que não está para cá vir duas vezes: uma para montar a cozinha e outra para pôr o parquet. Por causa da maleta.
— Da maleta?!! Que maleta?!!
— Da maleta dele que é muito pesada e ele não está para subir quatro andares, alombando com ela por duas vezes. Diz que tem de trazer as coisas dele, montar o estaminé e fazer os dois trabalhos de seguida. O que é que tu queres?, é assim!... Tu não imaginas o que eu tenho passado com estes gajos! Eu até tenho medo de um dia me atirar a algum deles e lhe torcer o gasganete!... Oh, porra, agora já estou com uma pontada na vesícula só de falar nisto. Tenho de ir fazer um chá de hipericão do Gerês. Ando a beber litros de hipericão do Gerês. Desconfio que estou a ficar agarrado ao hipericão do Gerês. Olha, beijinhos, tenho mesmo de desligar, tenho mesmo de ir, que até já estou com náuseas... Adeus, té’manhã.
— Nem me fales! Isso é um assunto muito longo e agora estou com pressa, que esta noite ainda aqui tenho muito que lhe dar.
— Mas então, o que é que se passa? O carpinteiro desaparecido já deu à costa ou ainda anda a monte?
— Já apareceu. O problema agora não é esse. A questão agora é que combinamos, mas ele está sempre a desmarcar, ora porque choveu, ora porque vai chover, ora porque não confia no último boletim meteorológico. O gajo tem imensos problemas com a meteorologia, tu sabes lá!...
— Mas... não estou a perceber!... O que é que a meteorologia tem a ver com a montagem de uma cozinha, se é tudo trabalho de interior?
— Aí é que está o complicado da história. Ai... ai... Vou então tentar fazer-te um resumo.
[Pausa]
— Uma pessoa pensa que pensa em tudo e nunca pensa em tudo.
— Mau!... Não me digas que vai ser uma história como a da exposição que fizeste para o tribunal e que deu tão mau resultado!...
— Qual delas?!
— Aquela em que tu começavas o texto por “Estava-se num Outono que se advinhava muito chuvoso...”
— Ah, sim, sim. Não era uma exposição, era a contestação ao processo que uma empresa me colocou por eu lhes exigir que me pagassem o que me deviam. E tive de ser eu a fazê-la, porque na véspera descubro que o advogado não tinha feito nada. Pois, essa do Outono... Que depois o juiz perguntava no relambório da matéria de facto: “Estava-se num Outono que se advinhava muito chuvoso?” e eu estava a ver que pra responder tinha de ir arranjar os gráficos pluviométricos desse ano... Ah, pois, essa história... Não. Não, desta vez é mesmo uma reflexão mais inquietante.
— Porra, que tu não consegues mudar um móvel sem angústias existenciais!
— Não é nada disso! Já vais perceber. A questão é com o isolamento térmico.
— Mas então não era só montar a cozinha?!
— Nãão! Já que vou a montar a cozinha cá em baixo e, antes disso, quero fazer o isolamento térmico lá em cima, porque aquilo no sótão é muito quente no verão e muito frio no inverno. E então pensei que devia aproveitar ter agora um mestre de obras para tratar disso. Pralém de que tem mesmo de se começar por aí. Mas o grande problema é que material usar no isolamento. Eu tinha pensado usar lã de rocha mais pladur, mas ele não concorda, quer pôr uma coisa que se chama roofmate, que ele acha que é melhor. E discutimos uma série de vezes por causa disso. Até que eu, de repente, páro para pensar: “Espera lá, por que é que eu estou práqui a insistir tanto na lã de rocha?” E então vou à net e verifico que a lã de rocha é cancerígena! E penso: afinal o homem tem razão! Já agora, deixa cá ver como é isto do roofmate. E descubro que o roofmate é inflamável, caraças!
— Ena, pá!... Ena pá 3000!!...
— Pois é, já estás a ver a coisa, não é? Estás a ver como é que eu fiquei, práli parado uns dias a pensar: “O que é que é pior? Morrer com um cancro ou morrer queimado?” Estás-me a ver, não é? É do caraças, uma pessoa apanhar-se a pensar assim!... Até que decidi: é pouco provável que alguém vá atirar um fósforo aceso para o tecto e que ainda por cima o fósforo se vá infiltrar entre as telhas e a placa. Se bem que, se a Maria Otília ainda aqui vivesse, não era de descartar tal hipótese. Pois se ela furou a parede de um túnel com o automóvel e andou anos a pagar o túnel à Confederação Helvética!... Bom, mas agora, enquanto ela andar entretida não sei por onde com os Palops, não vem práqui lançar chamas pró ar. De maneira, que lá dei razão ao homem e optei pelo roofmate.
— Então já está! Pelo menos essa já decidiste.
— Pois, mas a aplicação do roofmate implica que se levantem telhas. Nem quero pensar no que vai ser com os vizinhos quando eu disser que vou mexer no telhado, ai Jesus!... Bom, mas agora já percebeste porque é que a meteorologia tem implicações na prossecução da coisa, na montagem da cozinha.
— Mas, ó Pedrinho, isso assim é uma chatice! Tu já viste que já começou o Outono, que, por sinal, se advinha muito chuvoso? Então, agora é que tu vais mexer no telhado?!...
— Pois, mas o é que tu queres?... Isto estava programado desde Julho, mas têm-se metido umas coisas nas outras e chegamos a fim de Outubro. Estou feito, estou feito, estou aqui ensarilhado num nó que me enreda cada vez mais!...
— Então, mas por que é que tu não tratas de montar a cozinha e deixas o isolamento prá Primavera? Tens a casa cheia de materiais e uma cozinha sem funcionar: isso assim não dá!
— Porque o carpinteiro não pode vir pôr o parquet, antes do tecto arranjado, porque depois caem coisas, materiais, ferramentas e coisas assim e estragam o soalho, estragam-lhe o trabalho.
— Mas vinha agora montar só mesmo o essencial para a cozinha funcionar e depois faziam o resto, começando do tecto para o chão. Isso não é possível?
— Ser possível é, mas o carpinteiro diz que não está para cá vir duas vezes: uma para montar a cozinha e outra para pôr o parquet. Por causa da maleta.
— Da maleta?!! Que maleta?!!
— Da maleta dele que é muito pesada e ele não está para subir quatro andares, alombando com ela por duas vezes. Diz que tem de trazer as coisas dele, montar o estaminé e fazer os dois trabalhos de seguida. O que é que tu queres?, é assim!... Tu não imaginas o que eu tenho passado com estes gajos! Eu até tenho medo de um dia me atirar a algum deles e lhe torcer o gasganete!... Oh, porra, agora já estou com uma pontada na vesícula só de falar nisto. Tenho de ir fazer um chá de hipericão do Gerês. Ando a beber litros de hipericão do Gerês. Desconfio que estou a ficar agarrado ao hipericão do Gerês. Olha, beijinhos, tenho mesmo de desligar, tenho mesmo de ir, que até já estou com náuseas... Adeus, té’manhã.
1 comentário:
é um crime não continuares...
Entre a maleta, o telhado, o hipericão... è tudo soberbo!
Isabel Correia
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