10 de outubro de 2009

Bricolage sexual em noites de verão


Quando ela veio com o garoto buscar os peixes, nós já estávamos a começar os arranjos. Pra dizer a verdade, andamos sempre em arranjos. Com uma casa velha a que juntámos a do lado, tentando melhorar as duas à medida que nos pagam rendas, dependendo isso sempre de descobrirmos uns inquilinos mais ou menos lixados, com empréstimos às pinguinhas e as minhas idéias imparáveis de como transformar uma casa por fases, com uma, uma não, porra!, duas famílias de gente doida, disfuncionais como se agora diz, mas para mim, e a começar pela minha, é tudo gente doida, enfim a da Lena é mais totozice que maluqueira, mas a minha tem vários casos comprovados, eu que o diga, que normalmente calha-me diagnosticá-los antes de os outros se aperceberem, vendo-me depois obrigado a anunciá-lo, com a agravante de ninguém acreditar em mim e depois ter de tratar deles enquanto todos viram as costas e sacodem a água do capote.... Enfim, doidos e comodistas, é o que são!
Já nem sei o que estava a dizer...
Bom, o que é certo é que temos tido muito fim de semana e muita noite de bricolage e agora tinha de aproveitar o verão e as casa do lado desocupada para dar um avanço na coisa.
Então, quando a Marcela chegou com o miúdo de férias, estávamos nós já lançados na obra, embora ainda em fase de aquecimento. Ainda lhe perguntei se gostava do verde duvidoso que estava a começar a usar na parede do corredor, mas ela olhou desconfiada para mim e disse logo: “Não é por nada, mas acho um bocado diarreico...”
Decidimos logo ali eliminá-lo.
Bom, nos dias seguintes, começámos a acelerar a obra e decidimos que tínhamos de a ter pronta dentro cinco dias. Claro que levámos dez.
Betumámos os buracos na madeira das portas e rodapés, disfarçámos os buracos dos pregos nas paredes com gesso. Foi preciso lixar, polir, pintar. Tive de inventar e montar um sistema complicado de mesas, cadeiras e passadiços com roldanas para chegarmos ao tecto, porque não me ajeito com escadotes. Gosto de pintar e poder esbracejar. Dou dois passos atrás para ver a direcção exacta da tinta, a ver se não a estou a aplicar em demasia. Gosto de ter espaço para um bom balanço e para conseguir puxar bem a tinta, de forma regular. Além disso, tenho de ter sítio para colocar o cinzeiro, o isqueiro, o telemóvel, o copito da cervejola. Por acaso, agora no verão, tem sido mais vinho branco fresco. Foi aliás a Marcela que me pregou este vício. Chegamos ao verão e toca a transportar garrafas de branco do super e a comparar preços e qualidades. Aqui há anos era o Bucelas, que nós espanholizámos para Buçuelas. Isso era quando circulavam espanhóis pelas nossas casas durante todo o verão e fazíamos grandes reuniões ibéricas que metiam cantar ópera à porta dos "mil olhos" às 7 da manhã, no meio do ruído dos camiões TIR que na altura ainda passavam pela ponte Santa Clara. Agora não. Quer dizer, não sei se ainda por ali passam muitos TIR, mas já não há "mil olhos," é uma tristeza esta terra... A propósito de "mil olhos", o Juan que até nem tinha um mau português para cidadão, cidadão não, súbdito espanhol (eles ficam danados quando dizemos isto, mas é a verdade...), súbdito espanhol é que é! Bom, o português dele nem é mau pra espanhol, ainda por cima nunca tendo vivido em Portugal, mas às vezes tinha assim ... umas falhas e como bom espanhol que não pode dar o braço a torcer, resolvia a coisa com umas tiradas... como dizer?... criativas. E então ouvia-nos a falar da "noite tem mil olhos", se calhar nós dizíamos muito depressa não sei, ouvia-nos falar da "noite tem mil olhos" e, durante muito tempo, pensou que o bar se chamava a noite tem mil homens! Quando lá chegou e vim que não era um bar gay, quer dizer completamente gay, estranhou o nome. Mas só à terceira ou quarta vez é que perguntou porque é que aquilo se chamava assim. Depois, para disfarçar, quando todos o gozámos e dizíamos “então, não querias mais nada, hein?” ainda disse que depois de ver que não era bar gay, pensou que era uma referência literária. É, é, chama-lhe referencia literária, chama. Ele ia era todas as noites para lá a ver se a coisa pintava! Pois, pois, só quem não o conheça...
Outra muito boa do Juan foi pensar que Zambujeira vinha de zambulhar que em castelhano quer dizer mergulhar. Como é praia, tinha de ser logo em espanhol: o sítio onde se zambulhava. São de uma força, estes gajos!... Ah, e uma outra dele também muito boa: julgava que Alentejo era a terra das lentilhas. Lentejas – alentejo. Enfim, é muito criativo aquele rapaz...
Mas, onde é que eu ia? Ah!, as obras...
As obras levaram um tempão, está bom de ver, sempre com percalços disto e daquilo, de materiais que não se encontram e de buracos e falhas que aparecem do nada. Parece que estão os podres todos das casas à espera que se mude um parafuso, para saltarem sobre nós numa reacção em cadeia... É o diabo! É mesmo tramado! Mas eu não posso parar este processo — que isto é um processo e um processo que não sei quando irá terminar... Nem eu sei, nem ninguém. Só Deus!, como diria a Amália.
Bem, tinha de ter a casa pronta a alugar no recomeço das aulas, para ir pagando o empréstimo que fiz para comprar a do lado para albergar a irmã e a prima que me caíram aqui sem eu ter pedido e que não posso agora deixar ao desamparo. Ai meu Deus!...
Uma vinha para acabar o curso e já mudou de curso três vezes e a outra vinha de férias do Luxemburgo, resolveu ficar aqui a curar o desgosto de amor e já vai no quinto namorado, todos eles Palop, vá-se lá saber porquê... Nem sei se já não fez a volta aos Palops não em 80 dias, mas em... espera lá ... quatro meses! Quatro meses, cinco namorados, teve aquela rapariga! É uma média do caneco! Ainda lhe faltará algum? Quantos Palops é que há? Porra, é melhor não pensar nisso que fico logo com uma “camada da nervos” como diz a D. Augusta do 2º andar... Ai, ai...

O que eu sei é que estou rodeado de mulheres, cada uma a puxar para seu lado, mas quando toca a organizar e a dar uma certa sequência às coisas, viram-se todas contra mim a chamar-me tirano. Qualquer dia, ainda fazem uma votação e expulsam-me da minha própria casa como aconteceu com o Tozé quando vivia em Bruxelas.
Porra pra isto tudo!

Com tanta azáfama das obras, nem uma única vez pude ir beber copo ao fim da tarde que é uma coisa que fazemos, eu e a Marcela ou eu, a Marcela e a Lena (quando não está com a telha) todos os fins de verão. Para além disso, tivemos de faltar, a Lena e eu, ao jantar anual com o Manel Queirós antes de ele regressar à Suíça. E até costumam ser uns serões divertidos. Bem que eu andava a precisar de um breakezinho assim. Uma chatice! E tudo por causa da merda das obras! E da minha vida complicada que me obriga a resolver em três dias o que não consegui resolver em três meses...

Uma noite destas, a Marcela telefonou e lá lhe pude anunciar que tinha acabado as obras na noite anterior. Fizemos uma directa para acabar tudo: 30 horas seguidas na fase final! É que já não podia mais com aquela merda! Já não podia ver trinchas, já sonhava com o cheiro das tintas, já me sabia a comida a diluente, já não me aguentava, sempre a tropeçar em móveis fora do sítio e a dar topadas nas portas retiradas dos aros e encostadas aos cantos. Lá conseguimos acabar com aquela porra e limpar a casa.
Então lá lhe disse:
— As obras acabaram! Pelo menos por agora...
E ela:
— Finalmente! Então estás todo contente!
— Contente?! Eu?! Porquê?
— Porque acabaste, caramba! Pelo menos estás aliviado!... Não ficou bem? Não está bonito?
— Ficar, ficou. Mas depois sentei-me no sofá a olhar para as paredes e pus-me a pensar que nada disto faz muito sentido.
— Como, muito sentido? Nem muito, nem pouco, catano! Acabaste as obras, tens a casa num brinco e podemos ir beber um copo e sair à vontade enquanto não vem a chuva e o frio!...
— Não, não... Isto não tem muito sentido.
— Mas que raio de sentido querias tu retirar do fim de umas simples obras que tu mesmo fizeste? Agora que tens as paredes pintadas, é que te dá para estar com problemas existenciais?
Eu calei-me, não sabia que responder.
— Estás a ouvir?... O que é que tu querias afinal?! — insistia ela já a esganiçar a voz de irritação.
— Olha, pra dizer a verdade, eu queria é que elas me fizessem um broche, porra!

Segundos de silêncio do outro lado, mas não demorou muito a recompor-se e a voltar com voz em crescendo, com aquela mania irritante de martelar certas sílabas quando quer chatear:
— Ó Pedrinho, lamento dizer-te, mas por mais que tu pin-tes as tuas paredes com todo, mas to-do o carinho, elas nunca, mas podes crer que nun-ca te vão fazer um broche! Podes esperar sentado, já te digo!

Ela tem razão.
Qualquer pessoa sabe isso. Não é preciso ser um Einstein para chegar a essa conclusão.
Nem sei porque é que disse aquilo.

Desligámos depois de mais duas ou três larachas. Até hoje, ainda não fomos beber o tal copo de fim de estação.

Amanhã vou ao Ikea ver se já há estantes Billy azuis.

3 comentários:

Anónimo disse...

ADOREI!
espero que haja mais...
Isabel

io disse...

Muito, muito bom! Para quando um livrinho, de contos por exemplo?

blue disse...

às florzinhas, Rosa, Billys às florzinhas.