31 de outubro de 2009

Dante/Erza Pound: a mesma luta ou teoria da configuração


Sexta-feira à noite olho para um postal comprado em Florença em 1997. Repousa há anos numa das estantes do meu escritório: “Incontro di Dante con Beatrice” de Henry Holliday. Não há como uma sexta-feira à noite para ficar a pasmar para um pré-rafaelista.

1. Dante afirmava ter visto Beatriz pela primeira vez aos nove anos e nunca mais se ter esquecido dessa imagem. Deve ser a isto que se chama uma imagem pregnante. Prenhe mesmo antes do tempo da floração biológica da prenhez. A imagem pregnante é uma relação de ajuste, de reconhecimento, em que se vive suspenso numa espécie de espera. Dante esperou, não nove meses, mas nove anos para rever Beatriz. O número nove e seus múltiplos impregnam a Vita Nuova, povoando-a de segredos. O amor por Beatriz estava repassado de memória, morte e segredo.
A representação de Henry Holliday mistura um possível segundo encontro aos dezoito anos com o impacto da epifania que se teria dado miticamente aos nove, sobrepondo os dois momentos. Beatriz, de vestes claras, passa, olhando em frente, compenetrada em não saudar Dante que, desacordado pela aparição, tenta esconder o seu amor, cortejando falsamente a rapariga de vestes fulvas e formas bem menos angelicais do que as de Beatriz.
Dante leva a mão ao peito, sublinhando o embate da revelação. Esboça o gesto do animal ferido, mas a picada da dor é bem mais profunda do que o rasgão físico da lança invisível. Naquele instante, deixa de ser homem e passa a oráculo de si mesmo. E vê, fora de si, o ideal do eu. Pensará talvez: eu sou mais um, eu também estou ali, noutro, não estou mais contido em mim, prolongo-me para um outro em que me reconheço, mas que não domino.
Dominus era o senhor da domus, da casa. O não-domínio é a expulsão da casa. Da casa do ser, doravante semi-ocupada por outro que também sou eu.
Dante é fulminado pelo prazer e desprazer que esta revelação lhe provoca. É um derrame do ser que muda para sempre a sua percepção da vida e do eu. É a descoberta da introspecção. Dante inventou o amor e a introspecção. De certa forma, inventou a psicanálise — uma psicanálise renascentista. De resto, analisar-se/ser analisado é, de alguma forma, renascer.
Descobriu que o amor é o imaginário, uma película translúcida que transmite luz, que se deixa atravessar por ela, mas, no mesmo acto, oculta, confunde e ofusca.
Descobriu que o nosso olhar é uma cortina sobre o mundo. A revelação é de tal ordem que dissolve o eu anterior e deixa-o nu, descarnado. Pronto a ser preenchido pela imagem de Beatriz.

2. Dante morreu com 56 anos e Beatriz com 24. Há quem diga que apenas se encontraram aos nove anos e que Dante nunca teria chegado a falar com ela. Como é amar sem conhecer a voz? Sem acesso ao ruído do outro? A ter acontecido assim, o poeta teria vivido durante 47 anos fixado numa imagem fugidia que por ele passara no final da infância. Vivia do oxigénio desaparecido há muito. Vivia da ideia de oxigénio.
Há quem sustente que Beatriz nunca existiu. Mas também é possível que Dante a tenha conhecido fugazmente aos 18 anos. Seria Beatrice Portinari, filha do banqueiro Folco Portinari, mais tarde prosaicamente casada com outro banqueiro, esta amada ideal que atravessa o Arno pela ponte Santa Trinità, entrando muda e saindo calada de cena, aparentemente sem outro rumor do corpo que não seja o do esvoaçar do vestido florentino.
Noutra versão, criada pelo próprio Dante, Beatriz tê-lo-ia saudado e por esse acto, convertido para sempre a um amor auto-alimentado de ideal para uns, de delírio para outros.

A pintura de Henry Holliday parece o flash de uma passagem de modelos. O modo de caminhar, o segurar das vestes e expor os pregueados de tecidos em cores que não podiam existir no final do século XIII, estes segundos míticos para o amor ocidental poderiam ser o cartaz da nova colecção Primavera/Verão 1283. Nome da colecção: Dolce Stil Nuovo.

3. Onde é que nós já vimos isto?
Todos os dias, em qualquer transporte público e em qualquer série de televisão mais ou menos apatetada.
Hoje, graças a séculos de mal entendidos e de guerra dos sexos, graças aos efeitos de muita análise mesmo entre os que a rejeitam, podemos compreender mais facilmente estes dois apaixonados. Ele fica atordoado com a força que subitamente o invade e que não quer, não pode ou não sabe mostrar e disfarça mal, namoriscando as outras. Ela, naturalmente, não gosta, e não lhe dá o que hoje chamamos, na política e no amor, uma nova oportunidade.
Se esta história nos dá jeito na literatura, mitologia, psicanálise e na cotação na bolsa (há pelo menos dois banqueiros neste enredo idílico), na realidade, as coisas não foram bem assim.
Na “vida real”, Dante casou com Gemma Donati de quem teve quatro filhos e sobre quem nunca escreveu uma só palavra. A pobre Gemma teve de aguentar toda a vida a presença de um fantasma, mais poderoso do que o da Rebecca de du Maurier/Hitchcock.

Apesar da sua gigantesca capacidade de idealização, Dante não deixava o pragmatismo por mãos alheias. Teve uma carreira política ainda que toldada por grandes dissabores (o que o fez morrer no exílio, em Ravena – não um exílio dourado, mas um exílio bizantino, um exílio aos quadradinhos), participou na vida militar (foi amigo de Carlos Martel, esse herói da não islamização da europa) e era grande defensor dos sindicatos nascentes (as Guildas). De facto, tornou-se médico e farmacêutico, não para exercer estas nobres ainda que, à época, insipientes profissões, mas para se tornar sindicalista dos boticários e, através do sindicato, aceder à vida política. Onde é que nós já vimos isto? Como é que aquela península era, nessa data distante, tão moderna e hoje serve tão mal a democracia? Tudo isto são temas para não nos ajudarem a compreender a península itálica.
Para além disso, Dante desperta, de imediato, a nossa instintiva simpatia por se ter recusado pagar as multas pesadas que o governo florentino (muito a mando da intrigalhada papal que ele sempre combateu) lhe impôs por delito de opinião política. Proscrito e desiludido, chegou a declarar solenemente que pertencia a um partido com um único membro.
Tudo isto o torna bastante mais humano e vulnerável a nossos olhos e pode ajudar a compreender a sua visão dantesca do mundo que, não raramente, coincide com a nossa quando nos pomos a pensar com alguma intensidade no que nos rodeia, sem estarmos necessariamente nas margens do Arno.

4. No Natal de 2008, ao passearmos no bairro anarquista de Exárcheia, muito menos esventrado do que mostravam os telejornais e bem mais interessante do que a restante Atenas moderna, dizia-me o meu amigo Ignácio:
— Falam desta coisa da globalização como um fenómeno mais ou menos recente, mas...
— Recente dos descobrimentos para cá, queres tu dizer — interrompo eu, armada em esclarecida.
— Não, nina, é muito mais antigo! Olha, em termos culturais, acho que... acho mesmo que começou com o Dolce Stil Nuovo. É isso!, o Dolce Stil Nuovo já era a globalização cultural, não achas? Começaram todos a escrever e a pensar e a amar como o Dante e os amigos. E nunca mais parou. É claro que ele não descobriu a pólvora. Ele e os amigos. Já tínhamos tido antes os trovadores, os nosso trovadores, com ou sem provençais que só se apaixonavam na Primavera, como diz o vosso Dom Denis. Já havia amores místicos e tomismos e platonismos e essa coisada toda. Mas esses gajos do Dolce Stil Nuovo é que tiveram o golpe de génio de pegar nessas tendências todas, dar-lhes outras roupas e exportar para o resto da Europa. E pronto, lançaram um gosto, um modelo, com formas muito diferentes consoante as épocas, mas que nunca mais parou, já reparaste? É como a moda, é perceber o que anda no ar e dar-lhe uma forma. Aí é que começou a globalização. Foi com o Dolce Stil Nuovo, garanto-te eu.

Voltávamos pela praça Sintagma. Num canto em obras, em vez do habitual “Men at Work” ou equivalente indígena, lemos e rimos com a indicação “Metamorfosis”.
E continuámos a divagar a partir deste Dante mistificador, mas tão sagaz que dele a Erza Pound não deixou de se amar, escrever e ver o ser amado de modo a que não houvesse algum fio preso a essa tarde à beira do Arno com ou sem saudação de Beatriz.

Se aqui estivesse o meu amigo Tozé remataria com a palavra de ordem: “A luta continua: Beatriz toda nua!”

14 comentários:

henedina disse...

"Descobriu que o amor é o imaginário"
"um amor auto-alimentado de ideal para uns, de delírio para outros."
"fica atordoado(a) com a força que subitamente o(a) invade e que não quer, não pode ou não sabe mostrar e disfarça mal"

"Dante casou com Gemma Donati de quem teve quatro filhos e sobre quem nunca escreveu uma só palavra"

Traduzindo para a realidade, o que importa é que os homens querem sombra, se a arvore não lhe dá os frutos que querem, desde que lhes dê sombra... E as mulheres que são como Dante, vivem no imaginário, deverão viver, ou não no imaginário mas, na realidade, devem ter o que vai ao cinema ou de férias com elas, discute política, literatura, música e cinema. Partilha uma refeição, faz companhia, enfim o "Gemma" porque o "beatriz- que quer dizer quem me faz feliz", faz feliz mas há uma altura que ou é de carne e osso ou é melhor desistir.
Não acha, Rosa?

rosa disse...

não sei, Henedina, se entendi bem o que me diz.
a Beatriz de Dante, tenha ou não tido existência real, é o começo de uma longa história dos homens e das mulheres com eles/elas mesmos/mesmas e com a imagem do outro.
é uma história fantástica (nos vários sentidos do termo) que tem, por trás uma Gemma de que nunca se fala, mas não é essa reivindicação feminista que aqui me me interessa destacar. e olhe que me prezo por ser, como qualquer mulher ou homem modernos, uma convicta feminista.
interessa-me o que terá passado pela cabeça de cada uma das personagens deste quadro, o que me passou pela cabeça numa 6ª feira de allô in e o que este momento representado no quadro de Henry Holliday significa como alavanca para o nossxo imaginário ocidental.

Anónimo disse...

La roine regard le vallet moult doucement et il li, toutes les fois qu'il puet vers li mener ses iex couvertement, si se merveille moult dont si grans biautés puet venir com il voit en lui paroir, ne de la biauté sa dame del Lac ne de nule qu'il onques veist mais ne prise il riens envers chestui.(...)
Lors le prent la roine par le main, si li demande dont il est. Et quant il le senti, si tressaut tout autresi com s'il s'esveillast et tan pense il a li si durement qu'il ne seit qu'ele li a dit. Et ele aperchoit qu'il est moult esbahis, si li demande autre fois: "Dites moi, fait ele, dont vous estes". Et il le regarde moult simplement, si li dist en sospirant qu'il ne seit dont; et ele li redemande comment il a non et il respond que il ne seit comment. Maintenant aperchoit bien la roine qu'il est esbahis et trespensés, mais ele n'ose pas quidier que che soit por li et neporquant ele ne soupechoune un poi, si en laise la parole ester atant; et por chou qu'ele nel veut en grignor folie mettre, se lieve de la plache...

Lancelot en Prose. (ed. Micha). Roman em Prosa do século XIII. (momento em que Lancelot vê Guenièvre, esposa de Artur, pela primeira vez).

Citado por Dante o primeiro beijo de Lancelot et Guenièvre, que o fiel (e talvez também apaixonado) Galehout proporcionou.
Isabel

rosa disse...

exactamente, pá! tiraste-me as palavras da boca!

agora a sério: obrigada, ó neo-filóloga pós-moderna pré-candidata a para-ninfa.

obrigada pelo paratexto.

henedina disse...

"...como alavanca para o nosso imaginário ocidental."

"Love isn't a bonfire, for God's sake, it's a hard "cock" and a wet "cunt"" (sou feminista prefiro a designação correcta ao vernáculo)
The Revival, The Lemon Table.

"Lancelot et Guenièvre", claro, claro. E Beatriz pode nem ter existido mas existiu Gemma, da qual ele teve 4 filhos.

Foi Beatriz que perdurou e Lancelot. O que não caí na realidade é literatura.
É por isso que Gemma não interessa, é por isso que Guenièvre não é tão importante como Lancelote, porque o imaginário é mais fácil fora da consumação. (e valorizamos, na literatura, o ideal-o amor romântico- em detrimento do animal, porquê? Porque é mais raro).

Anónimo disse...

Guenievre e Lancelot são uma mesma construção. Um só tem sentido com o outro. Apesar de serem duas personagens,funcionam como um uno, quando se dissolve, a narrativa, que a consumação do seu amor também espoleta, acaba.
E houve consumação. perfeitamente carnal, embora descrita sob os parâmetros da estética do roman en prose medieval. A noite de amor dos dois já foi concebida no Chrètien, o verso que motivou a prosa:
Et puis vint au lit la reïne/ Si l'aore et se li ancline/ car an nul cors saint ne croit tant/ et la reïne li estant/ses braz ancontre, si l'anbrace/estroit pres de son piz le lace/ si l'a lez an son lit tret/et le plus bel sanblant li fet/que ele onques feire li puet/d'Amors et del cuer li muet/d'Amors vient qu'ele le conjot. /Et s'ele a lui grant amor ot/ et il C mile tanz a li/car a toz autres cuers failli/Amors avers qu'au suen ne fist/mes an son cuer tot reprist/Amors er fu si anterine/qu'an toz autres fu si frarine (...) Quant il la tien antre ses braz/et ele lui antre les suens. /tant li est ses jeus dolz et buens/et del baiser et del santir/que il lor avint sans mentir/une joie et une mervoille/tel c'onques paroille/ne fu oïe ne seüe (...)

Le Chevalier de la Charrette de Chrètien de Troyes. Primeira noite de amor entre Lancelot e Guenievre.
isabel

rosa disse...

acho que se equivoca com a pessoa a quem se dirige.

de qualquer forma, há muito animal na literatura. na literatura e fora dela. e perduram. oh se perduram! uns para bem, outros para mal dos nossos pecados, já que estamos em registo místico a que, de resto, eu não sou habitualmente dada.

repito que não sei se percebi o que me quer dizer. no entanto, convém lembrar que a vida não é literatura e que não se aprende a viver lendo livros. há até livros que nos explicam que os livros não explicam tudo. coisa a que os profissionais até acham graça, como dizia a publicidade quando ainda se chamava reclame.

henedina disse...

Isto não parece consumação realmente Isabel. Parece mais "Lagoa Azul".
Ainda vou concordar com a citação The Lemon Table.
Agora a sério. Todos achamos que lindo, lindo é este amor puro e longo das grandes criações literárias. Todos, homens e mulheres. Mas no país real, sonham com o amor romântico, prestigiam a não consumação, mas para a vida e não para a imortalização dá mais jeito o amor, pele com pele, mucosa com mucosa.

henedina disse...

"acho que se equivoca com a pessoa a quem se dirige."!!!!?
Acho que sim que me equivoquei mas foi de escrever no seu blog não foi consigo.
(não era pessoal, se houve da sua parte alguma leitura pessoal passou-me ao lado esteja descansada. Quando quero dizer alguma coisa digo não uso metáforas).
Para feminista vou-lhe dar a pior crítica. Mulheres!

rosa disse...

pareceu-me que me avaliava como uma ingénua defensora de amores castos, etc, etc...
de qualquer forma, não creio que os nossos discursos coincidam, mas não é preciso tanta fúria por eu não concordar consigo.
o seu último comentário é que não abona nada a favor do seu feminismo.
mas pode estar certa que lutarei sempre para que mulheres pouco respeitadoras das opiniões divergentes de outras mulheres as possam exprimir livremente.

no hard fellings.

henedina disse...

:)

henedina disse...

"pareceu-me que me avaliava como uma ingénua defensora de amores castos, etc, etc..."
O Rosa já a li o suficiente para não pensar isso. Na realidade até pensei que julgaria que eu lhe estava a dar indirectas e isto de amores é melhor esclarecer logo.
Adorei que me considerasse uma acerrima defensora de amores não castos.
E quanto ao feminismo era o seu eu não preciso que nade abone a favor ou contra o meu feminismo, se o amor não me perturbar, sou feminista como respiro.
Agora encerro os comentarios seja qual for a provocação que venha.
Beatriz, Guenièvre ou Rosa estejam bem.

henedina disse...

"pareceu-me que me avaliava como uma ingénua defensora de amores castos, etc, etc..."
O Rosa já a li o suficiente para não pensar isso. Na realidade até pensei que julgaria que eu lhe estava a dar indirectas e isto de amores é melhor esclarecer logo.
Adorei que me considerasse uma acerrima defensora de amores não castos.
E quanto ao feminismo era o seu eu não preciso que nade abone a favor ou contra o meu feminismo, se o amor não me perturbar, sou feminista como respiro.
Agora encerro os comentarios seja qual for a provocação que venha.
Beatriz, Guenièvre ou Rosa estejam bem.

Anónimo disse...

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