Preparo aulas sobre assuntos de que me recuso a tratar e desvio descaradamente para as relações entre o pensamento e a linguagem.
E, claro, volto a Wittgenstein. Não que tivesse de lá saído. Quem leu dois livros de teoria literária sabe que dali não se sai com a facilidade de quem perde a chave do automóvel e vai a correr à procura da sobresselente.
E, no entanto, não posso deixar de me admirar com a ingenuidade de Wittgenstein. (Já que estamos com as chaves na mão, valho-me da metáfora a que também serve a luva ou a serralharia Yale). Procurava ele, Wittgenstein, uma chave que resolvesse todos os problemas filosóficos. Para além do espanto perante a enormidade da empresa, tal pretensão faz ressoar ideias inquietantes como a da solução final — só a expressão provoca calafrios, mas isso não podia ele saber. Ou podia?
Wittgenstein é considerado, com toda a justiça, um filósofo moderno. O seu aspecto sexy reforça-lhe o epíteto e podemos dizer sem hesitações que Wittgenstein é o filósofo moderno.
Mas neste seu pleito de totalidade não dista muito da ingenuidade mais arcaica do sisudo e prussiano Hegel. Ainda que quanto a arcaísmos mais ou menos cândidos, como sói dizer-se, Hegel seja o nosso Platão.
Admiram-se as pessoas (quer dizer, as 10 pessoas que pensam nisso) que Hegel tenha querido dar uma explicação total para o funcionamento e para a história do mundo. O que é mais prodigioso é que o conseguiu, todos o usamos e não se vê em lado algum. Na verdade, Hegel não criou nada de concreto, o seu pensamento é uma bactéria que fagocitou os outros organismos e lhes deu vida ordenada. Criou uma espécie de GPS do pensamento.
Um século e alguns Napoleões depois, Wittgenstein não se coibe perante a mesma tentação do todo.
Talvez seja aquela indomável vontade dos sábios que os leva a arregaçar as mangas e a dizer “vamos lá a ver se resolvemos isto de uma vez para sempre”. Será questão de vontade e de organização. Mas quando ouvimos falar da indomável organização austríaco-alemã, ficamos sempre apreensivos.
Por outro lado, não podemos imaginar que Hegel e Wittgenstein fossem assim tão ingénuos. Na verdade, trata-se da questão do próprio corpo da filosofia. Do corpo e do método.
Arquimedes dizia que poderia mover o mundo se lhe fosse dado um ponto no espaço capaz de lhe servir de fulcro a uma alavanca suficientemente longa. A filosofia quer esse aparente totalitarismo, esse transcender o pensamento e a experiência de modo a encontrar um ponto a partir do qual o mundo possa ser visto como um todo. Quer um aleph. O aleph é uma criatura de ficção científica de J.L. Borges que figura um Big Bang retrospectivo, um Big Bang da História.
Abro aqui uma nota de rodapé sem roda e sem pé, parando um momento a pensar em Arquimedes. Porque Arquimedes era um homem extraordinário. Para além de ter descoberto o método para calcular o número π que eu, infeliz e totalmente desprovida de pensamento matemático, vislumbro nebulosamente como uma enteléquia mais distante do que a nebulosa de Orion, Arquimedes acreditava que nada do que existe é tão grande que não possa ser medido. Parece-me um dos homens mais optimistas de sempre, mas claramente, não viu o sktech dos Monty Python sobre o universo em expansão. Detém ainda o record mundial e provavelmente eterno da capacidade de concentração: Arquimedes foi morto por engano por um soldado romano durante a Segunda Guerra Púnica, cerca do ano 212 a.C., apesar de os soldados terem ordens explícitas para o defenderem, já que Roma tinha por ele enorme admiração. Diz-se que quando as legiões romanas invadiram a praia de Siracusa, encontraram um velho senhor desenhando círculos na areia. Sem imaginar que seria o génio matemático Arquimedes, assassinaram-no quando ele recusou obedecer às ordens militares, porque não queria ver perturbado o raciocínio que seguia naquele momento. Eu que, quando sou importunada a meio de uma frase que, de certeza, não mudará o mundo, fervilho em instintos assassinos, pasmo sem limites perante alguém que se deixa matar para não interromper o curso do pensamento. Antes morrer do que mudar de assunto: agora que não me dá jeito nenhum a pausa pró kit kat. Tal qual.
Este aparte sobre Arquimedes provavelmente não serve para nada, mas deu uma certa cor local e levou-nos à praia de Siracusa, onde, algumas galáxias depois, o general Patton queria ter desembarcado antes do rival britânico Monty (não Python, mas Montgomery, general Bernard Montgomery).
Tudo isto, porque não sei que dizer amanhã sobre as estratégias de ensino-aprendizagem de seja-o-que-for. Na verdade, sei mais sobre a gripe A do que sobre qualquer estratégia desse teor. Para estratégia, o melhor é ler os clássicos e as várias narrativas da campanha da Rússia ou mesmo falar com o general Patton já que ele deve andar por aí, pois acreditava na reencarnação.
(À SUIVRE...)
(...se houver condições)
E, claro, volto a Wittgenstein. Não que tivesse de lá saído. Quem leu dois livros de teoria literária sabe que dali não se sai com a facilidade de quem perde a chave do automóvel e vai a correr à procura da sobresselente.
E, no entanto, não posso deixar de me admirar com a ingenuidade de Wittgenstein. (Já que estamos com as chaves na mão, valho-me da metáfora a que também serve a luva ou a serralharia Yale). Procurava ele, Wittgenstein, uma chave que resolvesse todos os problemas filosóficos. Para além do espanto perante a enormidade da empresa, tal pretensão faz ressoar ideias inquietantes como a da solução final — só a expressão provoca calafrios, mas isso não podia ele saber. Ou podia?
Wittgenstein é considerado, com toda a justiça, um filósofo moderno. O seu aspecto sexy reforça-lhe o epíteto e podemos dizer sem hesitações que Wittgenstein é o filósofo moderno.
Mas neste seu pleito de totalidade não dista muito da ingenuidade mais arcaica do sisudo e prussiano Hegel. Ainda que quanto a arcaísmos mais ou menos cândidos, como sói dizer-se, Hegel seja o nosso Platão.
Admiram-se as pessoas (quer dizer, as 10 pessoas que pensam nisso) que Hegel tenha querido dar uma explicação total para o funcionamento e para a história do mundo. O que é mais prodigioso é que o conseguiu, todos o usamos e não se vê em lado algum. Na verdade, Hegel não criou nada de concreto, o seu pensamento é uma bactéria que fagocitou os outros organismos e lhes deu vida ordenada. Criou uma espécie de GPS do pensamento.
Um século e alguns Napoleões depois, Wittgenstein não se coibe perante a mesma tentação do todo.
Talvez seja aquela indomável vontade dos sábios que os leva a arregaçar as mangas e a dizer “vamos lá a ver se resolvemos isto de uma vez para sempre”. Será questão de vontade e de organização. Mas quando ouvimos falar da indomável organização austríaco-alemã, ficamos sempre apreensivos.
Por outro lado, não podemos imaginar que Hegel e Wittgenstein fossem assim tão ingénuos. Na verdade, trata-se da questão do próprio corpo da filosofia. Do corpo e do método.
Arquimedes dizia que poderia mover o mundo se lhe fosse dado um ponto no espaço capaz de lhe servir de fulcro a uma alavanca suficientemente longa. A filosofia quer esse aparente totalitarismo, esse transcender o pensamento e a experiência de modo a encontrar um ponto a partir do qual o mundo possa ser visto como um todo. Quer um aleph. O aleph é uma criatura de ficção científica de J.L. Borges que figura um Big Bang retrospectivo, um Big Bang da História.
Abro aqui uma nota de rodapé sem roda e sem pé, parando um momento a pensar em Arquimedes. Porque Arquimedes era um homem extraordinário. Para além de ter descoberto o método para calcular o número π que eu, infeliz e totalmente desprovida de pensamento matemático, vislumbro nebulosamente como uma enteléquia mais distante do que a nebulosa de Orion, Arquimedes acreditava que nada do que existe é tão grande que não possa ser medido. Parece-me um dos homens mais optimistas de sempre, mas claramente, não viu o sktech dos Monty Python sobre o universo em expansão. Detém ainda o record mundial e provavelmente eterno da capacidade de concentração: Arquimedes foi morto por engano por um soldado romano durante a Segunda Guerra Púnica, cerca do ano 212 a.C., apesar de os soldados terem ordens explícitas para o defenderem, já que Roma tinha por ele enorme admiração. Diz-se que quando as legiões romanas invadiram a praia de Siracusa, encontraram um velho senhor desenhando círculos na areia. Sem imaginar que seria o génio matemático Arquimedes, assassinaram-no quando ele recusou obedecer às ordens militares, porque não queria ver perturbado o raciocínio que seguia naquele momento. Eu que, quando sou importunada a meio de uma frase que, de certeza, não mudará o mundo, fervilho em instintos assassinos, pasmo sem limites perante alguém que se deixa matar para não interromper o curso do pensamento. Antes morrer do que mudar de assunto: agora que não me dá jeito nenhum a pausa pró kit kat. Tal qual.
Este aparte sobre Arquimedes provavelmente não serve para nada, mas deu uma certa cor local e levou-nos à praia de Siracusa, onde, algumas galáxias depois, o general Patton queria ter desembarcado antes do rival britânico Monty (não Python, mas Montgomery, general Bernard Montgomery).
Tudo isto, porque não sei que dizer amanhã sobre as estratégias de ensino-aprendizagem de seja-o-que-for. Na verdade, sei mais sobre a gripe A do que sobre qualquer estratégia desse teor. Para estratégia, o melhor é ler os clássicos e as várias narrativas da campanha da Rússia ou mesmo falar com o general Patton já que ele deve andar por aí, pois acreditava na reencarnação.
(À SUIVRE...)
(...se houver condições)
7 comentários:
Ensinar é ter capacidade de abrir janelas para o mundo e aprender é estar disponível para rasgar mais essas janelas e ver mais e diferente com essa "janela" que nos abriram.
O professor não é o que mastiga e entrega a matéria, isso é o passaro às crias. Professor é quem nos faz querer ir mais além.
(vou ver se desta vez não me enganei a escrever no seu blog :))
isso era noutra vida. o que ensino agora é mais janela para ter vontade de me atirar dela abaixo. ou acima.
é a infelicidade no trabalho.
es lo que hay...
Rosinha querida, nada a assinalar. Beijos e me voy, que tenho mais uns caixotes para desfazer e amanhã é dia de mastigar e entregar umas aulitas.
:)
A sério chica pardoca?
Então és um pássaro?
No alto ou no baixo da minha utopia, pergunto-me, por que raio não se ha de poder ensinar coisas tão importantes e úteis como Wittgenstein ou literatura. Sobretudo se quem os ensinar perceber do assunto. os professores que mais me marcaram foram aqueles que davam as aulas como se contassem uma história. Infelizmente, muita gente, não sabe o que isso é, nem deixa que outros saibam. é mais importante o corredor do lugar na carreira ou a satisfzação do poderznho.
Quem perde, ainda que não o saibam, são os alunos.
mas isso, também não interessa nada, não é?
rosa, vê lá se arranjas condições
at: no natal, por definição, não há condições. se conservarmos a sanidade mental e não partirmos a cara a ninguém, já não é mau.
embora eu nem tenha razões para me queixar, para dizer a verdade. o meu natal é cada vez mais minimalista.
mas as condições, também por definição, não dependem de nós, ao contrário do que dizem os irritantes new age e fascistas quejandos.
depende mais da disponibilidade das repartições como se diz em Angola.
a ver vamos como diz o cego.
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