12 de dezembro de 2009

young at heart





YOUNG AT HEART
(Richards/Leigh por Francesco Alberto Sinatra, 1953)

Ficava longo tempo na sanita tentando desprezar a preocupação. A preocupação chamava-se intestinos. Afastava-se da dor, curvando-se ligeiramente sobre si mesmo e fixava um único azulejo do chão sem desviar o olhar um milímetro. Era o truque para se abstrair do sítio onde passava tantas horas. Fitar de forma intensa um dos quadrados ao acaso e nunca vacilar nesse esforço. O azulejo distendia-se um mícron, prestes a ser pulverizado com a intensidade do seu olhar: a visão laser dos super-heróis. Este pensamento fazia-o sempre sorrir. Um super-herói trespassado pela dor de barriga como uma criança antes de subir ao palco na festa de Natal. Fazia descer o laser até ao chão e afagava levemente a superfície gasta de vidrado baço. No momento seguinte, se a sua mega força mental o decidisse por um simples capricho, podia desfazer o azulejo em pó. Nunca o fazia. Ficava satisfeito com a possibilidade e com o requinte snob de a rejeitar. Na verdade, desistia porque, mesmo mentalmente, daria demasiado trabalho. Precisava da imaginação para algo mais imediato mesmo num super-herói: a sobrevivência. A sobrevivência à dor. Mas teria bastado querer — pensava num sorriso muito mental e já longínquo. É a vantagem de estar sozinho e ter o tempo por sua conta: pode-se fazer tudo sem na realidade mexer um dedo.
“É o destino”, pensava, “esta coisa do pó é o destino de todos. Mesmo para os azulejos.”
Nesse acto hipotético de destruição era como se fulminasse a dor e deixasse de a sentir. Ultimamente os azulejos escolhidos eram quase sempre os mesmos. Não por delito de fantasia, mas por todos eles serem feios, de um cinzento-tristonho que começava a indiferenciá-los numa tonalidade mortuária e pastosa.
E também por outra razão, a profunda, a verdadeira parte épica do ritual: a música. A aventura microscópica coincidia com uma expansão dentro da cabeça que o lançava pelo espaço fora. Enquanto olhava para o chão sem olhar para o chão, ouvia sem parar discos antigos, vinis que tinha guardado com tanta dificuldade, de país em país, de casa em casa, de família em família. Ouvia-os incansavelmente num som perfeito, menos puro mas mais límpido do que o dos cds. A música era finalmente integral naquele som com pequenos estilhaços que se ouviam, advinhavam e sobrepunham. Sentia o deslizar da agulha e a intensidade, largura e duração da música eram mais profundas e vastas do que a gravação inodora dos cds. Como um sulco de unhas afiadas na pele morena. Era a perfeição do passado com os instrumentos do futuro. Os filhos e netos tinham arquitectado um sistema de som que combinava um novíssimo gira-discos a funcionar à maneira antiga com a limpidez da nova tecnologia quase invisível, apenas a necessária para limpar os discos dos maiores desperdícios do tempo. Era um som que vinha do passado que ele ouvia melhor, agora que sabia mais de tudo e via a simplicidade do fim da vida. Os auscultadores hi-tec isolavam-no do resto do prédio e ofereciam-lhe uma festa contínua. Ouvia discos antigos e sorria pela noite dentro sem cansaço, sem o sono que o atormentava todo o dia como uma doença.
Sorria e ia morrendo antecipadamente.

2 comentários:

Isabel Sofia disse...

Que amargo...

mariantonia disse...

Muito bom.
Isto não tem o botão para clicar "gostei".
Tem de se escrever.