3 de janeiro de 2010

Homenagem à Catalunha I — Els catalans no tenin rei




Don’t get me wrong, como diz a música, mas há muito que ando para enviar um recado aos meus amigos catalães.
É desta.
Sinceramente acho que vocês são um bocadinho exagerados.
Bem sei que somos todos latinos e fazemos umas figuras de opereta a propósito por um “passa-ma aí o sal”, temos paixões descabeladas e nos contorcemos em argumentações de alto teor de adrenalina até provar que a nossa mãe é o nosso pai (a bem dizer, hoje isso não é assim tão mirabolante) ou que o nosso gato escreveu os sonetos de Shakespeare, mas vocês, catalães, ganham-nos aos pontos. Desconfio que só os italianos vos conseguem superar. Mas, já se sabe, os italianos detém as medalhas olímpicas de tudo quanto é disparate, radicalismo e bom gosto na Europa.

Há já largos dias (13 de Dezembro) pudemos ler os títulos a toda a extensão: “94,71% dos catalães votam pela independência da Catalunha!”
O meu amigo A. telefonou-me logo a comunicar a notícia como se a Península Ibérica se estivesse a esboroar.
Eu desconfiei. Porque conheço alguma coisa da Catalunha, ou melhor de Barcelona, conheço um pouco da mentalidade retorcida e persistente dos catalães e, apesar da casmurrice que os caracteriza, sei que, no geral, não querem independência coisa nenhuma. Querem é chatear. Chatear Madrid, obviamente. Madrid, essa cidadezita recente e inventada à força, essa capital de coisa nenhuma – como já ouvi muito catalão referir-se-lhe do alto de um desprezo alcatifado nas barbas venerandas da sua verdadeira capital – Barcelona.
Fui informar-me e verifiquei que dos 946 municípios da Catalunha, 166 deles tinham realizado um referendo ad hoc, experimental e não vinculativo (vulgo, uma maneira de matar o tempo em locais onde não se passa grande coisa e o pessoal se conhece mais ou menos todo de vista) e nestes 17, 54% de municípios, dos 700 mil eleitores que poderiam votar, 30% fizeram-no e destes ainda, então sim, 94,71% votaram a favor da independência da Catalunha. Pelas minhas modestas contas, e sendo os catalães 7 milhões e picos, isto equivale a 3% do people (ou da gent). Não é exactamente 94,71% dos catalães. É só um bocadinho ao lado.
Poderíamos dizer que uma notícia destas deveria ser verificada pelas nossas agências de informação, que os jornais andam pelas ruas da amargura, que os títulos em rodapé das TVs fazem mais rombos na informação do que qualquer miniatura do Duomo contra o colgate de qualquer cavaliere. Tudo isto é vero e tristemente vero. Mas aqui o busílis não é só nosso. É de lá. É até muitíssimo de lá.

Em rápida pesquisa na net leio que o vice-presidente do Governo Autónomo da Catalunha, Josep-Lluís Carod Rovira, sustenta, sem pestanejar, que Espanha ainda não assumiu ser Portugal um estado independente. Ou seja, o número dois do executivo catalão ainda não recebeu a circular de Madrid a reconhecer a independência de Portugal. Pelo tom da indignação de Rovira parece que no Palau de la Generalitat estará um funcionari públic destacado para receber esse correio urgente desde... 1640! Já tive atrasos de um mês no correio vindo de Espanha, mas este torna-se um caso de polícia, ou melhor, de Mossos d’ Esquadra (aqui pra nós, os únicos homens bons da Catalunha). Bons nesse sentido de bondade em que estão a pensar.

Clama Rovira pelo apoio de Portugal para o projecto de independência da Região Autónoma cujo referendo propõe para 2014. "O que menos interessa a Portugal é uma Espanha unitária"— assegura, oferecendo-nos, de bandeja, mais uma frente de combate como se já não tivéssemos, dentro de portas, chatices que cheguem e sobrem para esta década.
E esclarece: "A Catalunha é como Portugal mas sem os Restauradores". Pois, só com o Rossio. E a rua da Betesga como brinde.
Referindo-se aos acontecimentos de 1640, afirma que "se as coisas tivessem sido ao contrário, hoje Portugal seria uma região espanhola e a Catalunha um estado independente". Bom exemplar de revisionismo histórico género vox populi — “se a minha avó tivesse tomates era o meu avô”.
Josep-Lluis Carod Rovira garante ter "muitos aliados internacionais", mas recusa-se a aprofundar o assunto para não dar "pistas desnecessárias". Claro, é coisa do mais alto secretismo. É por isso que ele vem para os jornais levantar a lebre.
Considera que "os processos de independência passam por três fases: ridicularização, hostilidade e aceitação. Neste momento, estamos entre a primeira e a segunda". Permito-me levantar a hipótese académica (só académica e muito hipotética) de ele ser o grande timoneiro da primeira fase deste metamórfico processo.
É curioso que para uma questão tão importante seja proposta uma data ainda distante. Rovira não perde tempo e apresenta três sólidas razões: em 2014 "assinalam-se os 300 anos sobre a data em que Catalunha perdeu a condição de Estado"; em segundo lugar, porque termina o investimento em infra-estruturas, previsto no Estatuto de Autonomia da Catalunha, pelo executivo espanhol; e finalmente, porque em 2014 acabam as ajudas do Fundo de Coesão Europeu. Ou seja, as três razões são duas: uma de carácter histórico-nostálgico e duas de carácter económico-nostálgico, em latim vulgar, acabou o dinheiro, ala que se faz tarde, tenho que ir andando que tenho um javali ao lume. “La pela es la pela”.
Por fim, a nata do creme com cereja em cima da mayonese: no seu gabinete da Generalitat, Carod Rovira tem uma fotografia com o ex-presidente da Câmara de Lisboa, João Soares. Mas esta não é a única nem a menos lacrimosa referência a Portugal já que utiliza o menu do telemóvel em português e um cartão de visita bilingue: em catalão e em português, pasme-se!
Que seria de nós sem esta catalanic connection? Onde iríamos nós parar como destino, povo, identidade, com a nossa consabida fragilidade ôntica, com a mudança intempestiva dos horários da CP, se não fossem visionários deste calibre que só pelo simples acto cívico de terem o menu do telemóvel em português e pela glória de ostentarem uma foto de João Soares sobre a caliça do reboco, podem mudar a geografia política da Europa e, o que não é menor empresa, deixar Eduardo Lourenço e Boaventura de Sousa Santos a jogar à sardinha na fila de espera da Segurança Social?

É o que vos digo: temos homem, temos estadista. Embora ele nos esteja aqui a arranjar um caldinho com o governo de Madrid, é por uma boa causa e só podemos estar-lhe agradecidos. É que até pode significar a devolução de Olivença, se virmos bem a coisa.

Ps: como de costume, Saramago discorda da ideia. Não me espanta. Saramago tem sempre que dar nas vistas. Opina ele que não senhor, que Espanha encara Portugal como um Estado independente! Mas o que é que ele sabe se vive fora da Península Ibérica, praticamente em frente ao Cabo da Boa Esperança?!

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