23 de agosto de 2010

Via Veneto vista da rua do Brasil

“A felicidade consiste em dizer sempre a verdade sem ferir ninguém.” – diz Guido, alter ego de Fellini em 8 ½.
Que pensamento tão tipicamente masculino!
Que aura de quem leva os dias entre a Cinecittà e a Via Veneto, cruzando passeios de largura ostensiva e curvilínea, com o olho em quem circula e a cabeça em Orion.
A sinuosa Via Veneto é a esplanada inalcançável de todos os elegantes de outrora, mitificados libertinos sem emprego certo. Certos apenas naquele passear pelo tempo sem certitude possível.
Agora há um Hard Rock Café, essa praga inexplicável, o reader’s digest da fast-cultura sub-juvenil que adultos bimbos também consomem e exibem ao peito como medalha de tontos certificados. Os mesmos que, sem crianças para acompanhar, vão à Eurodisney e asseguram que se divertiram muito e ficaram sem tempo para ir ao Museu de Orsay ou simplesmente para vaguear pelas ruas.
Agora, abaixo, na Via del Tritone, há a casa Pinocchiotoy que anuncia “souvenir e giocattoli” e exibe reproduções Schleich tão tedescas e autênticas dos gladiatori romani.
Da Via Veneto de outrora resta a curvatura sensual e a possibilidade tão latina de descer a rua deslizando a 10 km à hora e pedir o cappuccino de turista principiante. Melhor sentar dez minutos melancólicos debaixo das magnólias que assistiram a tanta promessa de sexo em tanto pomeriggio troppo azzurro e lungo.
Deixo Barberini e volto a Fellini.
“Adesso vengo, adesso vengo” – grita Mastorbani preso debaixo da mesa, deslizando entre as pernas de dezenas de mulheres. Olho vibrante para todas e para nenhuma.
No final do filme Guido/Marcelo diz, lançando vago olhar ao horizonte repetitivo das suas deambulações: “O que é isto? Estou só a deixar passar o tempo. Não fiz nada na vida.” (Um dia destes alguém me dizia o mesmo, porque é triste como a RDA. Ex-RDA, caso ainda não tenha dado conta.)
Filme profundamente masculino como todos os de Fellini.
Sem ideias para o filme, mas cheio de ideias sobre as mulheres que são só assombrações e marcas de passagem pelo terreno, Guido arrasta-se e arrasta a asa a todas e a nenhuma como se fosse uma inevitabilidade.
Todos lhe querem vender ideias, mas ninguém lhe dá uma ideia de salvação. Haverá ideias de salvação para uso alheio? Guido tenta fugir às pressões da realidade, mergulhando nas suas fantasias sexuais e numa memória atravessada pela culpabilidade. É a confissão de um homem na sua verdadeira condição heterossexual: perdido e imparável na sua bulimia que não se detém sob a culpa, mas não pode eliminá-la, ainda que seja já fugaz o entusiasmo pelo interdito. Provavelmente esta é a definição de tédio.
Um egocêntrico sem ideias que se expõe e espera encontrar saída por e nesse acto. De preferência acompanhado. Guido/Mastroanni/Frederico três nomes para Otto e Mezzo em Roma, cidade fechada.

“Perdoe-se-nos o excesso de citações, mas nós, os críticos, fazemos o que podemos.” — diz um crítico vestido de crítico, com óculos de lentes garrafais e mãos de harpia, virado para a câmara no final caótico de interminável desfile à la fellini.
E prossegue o crítico míope: “Já há tantas coisas supérfluas na vida! Não é preciso acrescentar mais desordem à desordem.”
Diz ele no meio da desordem.

Fellini queixava-se de ser visto como um mistificador. Mito claramente criado ou, pelo menos, alimentado por ele. Num artigo de 1962, começa por assegurar “desde já vos digo que nunca vou à Via Veneto. Bem, quase nunca.” Um pouco adiante acrescenta que no filme inventou uma Via Veneto que não existe. Mas a moda pegou e a rua “fez um grande esforço” por se aproximar do filme. Passou a haver fotógrafos em todos os cantos, starlets em vestido de noite a qualquer hora “ou entrando a cavalo nos cafés.”
Na verdade, diz, os seus primeiros anos em Roma foram tempos de vitelloni.
Roma “era uma kasbah minúscula de quartos alugados em volta da estação principal, com uma população misturada de imigrantes assustados, prostitutas, trapaceiros e chineses que vendiam gravatas.”
Foi mais ou menos o mesmo, com alguma actualização, o que vi em 2008. O mundo em volta de Roma Termini é um microcosmos de bed & breakfast duvidosos e com esquemas submafiosos (ou subcamorrianos, pensava eu vinda de Nápoles em plena crise do lixo) a propósito de tudo e de nada, como senhas para autocarro ou unguentos para infecções cutâneas subtraídos da farmácia, para além da muita droga pesada e dos pedintes de seringa em riste, habituais nas estações centrais das grandes cidades europeias – os pedintes de Roma Termini não são diferentes dos da estação central de Kopenhagen, apenas falam menos sozinhos e usam roupas mais leves.
Reproduzo a narrativa felliana de Fellini de uma ida a Moscovo em 1963:
“O auditório era imenso. Imaginem só, estavam lá cerca de oito ou nove mil pessoas. Mil estavam de pé. Os directores do festival e os jornalistas disseram-me que nunca lá tinha estado tamanha multidão. Fora com a minha mulher, que é muito conhecida na Rússia desde La Strada e Cabiria. Quando eu e Giulietta aparecemos no palco os aplausos foram espontâneos e muito fraternos, verdadeiramente encorajadores, porque estavam cheios de calor e afecto.
Depois começou 8 e ½. As legendas em russo eram poucas e surgiam espaçadamente. Visualmente era, digamos, um pouco desapontador. Como estava a ser projectado na enorme sala de conferências do Krelmin, cada lugar tinha um par de auscultadores e saíam de todos eles ao mesmo tempo traduções simultâneas em francês e inglês... por outras palavras, toda a sala estava cheia de vozes metálicas. Oito mil pares de auscultadores, por muito colados aos ouvidos, deixam sempre escapar algum ruído: a atmosfera era a Torre de Babel.
Apesar disso, o público seguia atentamente o filme, quase respeitosamente, de tal forma que quase me senti pouco à vontade. Compreendi, de repente, que uma história pessoal — as minhas recordações de infância, os meus problemas actuais, as minhas relações com os produtores: uma história que talvez não fosse apropriada para aquelas oito mil pessoas de uma outra raça e com outros costumes. Quase me arrependi. Naquela altura teria feito tudo para tornar o filme diferente e para chegar de forma mais directa àquela audiência.
Vi que alguns momentos que tinham feito o público sorrir ou rir em Itália, França ou América falhavam aqui completamente — havia um silêncio total e gelado. A meio do filme estava convencido de que a tarde ia acabar mais ou menos em desastre. Então, de repente, rebentaram os aplausos. Durante a dança de Saraghina houve mais aplausos — calorosos e francos da parte do público. E outra vez antes de o filme acabar. No final, um último período muito longo de palmas, uma verdadeira ovação. Realmente não o esperava.
Apesar de, provavelmente, o filme não ter sido completamente compreendido, alguma coisa atingira os espectadores: as pessoas estavam perturbadas. E depois da projecção, lá fora, na rua, as pessoas continuavam a aplaudir e a gritar o meu nome durante muito tempo.
Mais tarde, no hotel, um jovem de olhar selvagem e grandes barbas quase caiu de joelhos para me beijar. Fez um discurso enorme na sua língua. (Eles gostam disso: falam sem interrupção e sem se ralarem nada que os compreendam ou não. Talvez estejam tão cheios de emoção que pensem que isso ultrapassa as palavras.) Depois aproximou-se o membro italiano do júri, Amidei, que explicou que aquele jovem era o membro checo. A seguir apareceu outro homem: o búlgaro... De facto, os primeiros a cumprimentarem-me nessa tarde foram os representantes das Repúblicas Socialistas.
Mas o que aconteceu depois foi isto: os oito votos contra o meu filme, no júri de quinze, foram dados pelos membros das Repúblicas Socialistas. Soube que Amidei se voltou para o checo e disse: «Mas ontem beijaste e abraçaste Fellini... desculpa perguntar, mas por que é que hoje votas contra ele?» Com uma candura comovedora, o checo respondeu: «Sim, de facto adorei o filme. Mas recebi um telegrama do meu governo a proibir-me de votar em filmes que não correspondam àquilo a que o festival se destina... é um festival que só deve premiar os filmes dedicados à paz e à amizade entre os povos...etc., etc.» Nessa altura (repito o que me contaram), Amidei pediu que fosse registado em acta o que o representante checo tinha dito. Depois, com o apoio dos representantes americano, francês, indiano e brasileiro interrompeu a discussão. Foram todos ver-me e tivemos uma discussão bastante excitada — bem, bastante dramática. Chegámos mesmo a pensar em entrar em contacto com o embaixador italiano, quanto mais não fosse para assentarmos na orientação a traçar no nosso comunicado à imprensa. Afinal aquilo era um escândalo, pelo menos a nível diplomático. Mas, enquanto discutíamos, apareceu de novo o representante checo. «Já só somos oito e queríamos arranjar uma solução», disse-me ele. «Se lhe déssemos um prémio, aceitá-lo-ia nestas condições: “Damos o prémio a um realizador brilhante, a um artista imaginativo. É pena, no entanto, que este filme não contribua para a paz e a amizade entre os povos?”»
«Até podia aceitar», respondi eu, «se quisesse ter uma anedota para contar até ao resto da minha vida. Mas não vê que ridícula é esta situação? Iria receber um prémio e ao mesmo tempo uma admoestação. Teria de dizer: “Muito obrigado, prometo não tornar a fazer isto outra vez.”»
O checo, pobre tipo, concordou que eu tinha razão. «Sim, sim, é verdade», dizia ele. — «Então, se é verdade», disse eu indignado, «porque é que me vem perguntar se quero aceitar um prémio com estas condições?» acabou por se ir embora e voltou mais tarde com outros dois representantes (o búlgaro e o polaco) para pedirem aos dissidentes que voltassem ao trabalho. Os representantes ocidentais concordaram e, por fim, acabaram por conseguir acordar numa nova fórmula, muito bonita, que não parecia de maneira nenhuma o resultado de um compromisso: «Damos este prémio a 8 e ½ porque é o testemunho do trabalho de um artista à procura da verdade.»
E assim recebi o prémio. Na tarde da entrega dos prémios o auditório ainda estava mais cheio do que para a projecção do filme, e o público aplaudiu freneticamente. Fiquei comovido. Todos os jovens realizadores russos, os jovens intelectuais e escritores que tinham estado a segurar uma vela por mim, se sentiam quase como se tivessem recebido um prémio, isto é: um prémio que os autorizava a ter esperança e a exprimir essa esperança.”
“Com «8 e ½» em Moscovo”, in Fellini conta Fellini, Lisboa, Bertrand, 1982, pp. 107/111.

Estou aqui sentada à espera do Outono, a ma
stigar a esferovite de conceitos e para-conceitos mais ou menos didácticos, todos profundamente inúteis e pastosos. Calculem que até se reclama uma competência existencial entre as várias proficiências possíveis! Ou impossíveis.
Daqui, deste meu posto de incompetente existencial, saúdo-vos com este relato de um mundo antigo no qual o absurdo e o desperdício variavam como um fuso horário entre o ocidente e o leste. O lixo é histórico e não poupa os regimes, as vidas passam e as pegadas desvanecem.
Via Veneto e Via Láctea, a mesma luta!
Boa
rentrée, camaradas!


3 comentários:

blue disse...

bonne reentrée, Rosa
"(...)
Qu`il y a des épines aux Rosa

Rosa rosa rosam
Rosae rosae rosa
Rosae rosae rosas
Rosarum rosis rosis"

henedina disse...

"A felicidade consiste em dizer sempre a verdade sem ferir ninguém." Eu digo (ou tento dizer) sempre a verdade o que é impossível é não ferir ninguém.
No dia em que não ferir ninguém, nem ninguém me ferir, estou a viver na/a mentira.

Não vou começar agora. Este post Rosa, está um bocadinho Manuel de Oliveira, sem a excelencia da fotografia, sem 2 ou 3 paragrafos, ficava mais Fellini.

Bonne rentrée.

rosa disse...

Manuel de Oliveira?! Nem pensar, não tenho pachorra pra chatos pouco inteligentes.
Livra!