10 de setembro de 2011

as casas em espinho com ruy belo


rebecca horn

— que nome

existe para isto que nem mesmo é alegria

ruy belo, boca bilingue

com este aspecto esplêndido diz ele que vou pela rua principal

as casas resplandecem onde menos se espera

na encruzilhada uma delas espreita e diz aqui estou à espera

abrem-se armários há estolas de raposa cor de rosa velho

atentas, esperando há décadas

vestidos negro azeviche e brilhantes prontos a serem transportados

para alguma cidade desfiada e gélida

varandas triangulares apontam para o centro do inverno

na cauda da cidade um terraço gigantesco espera os cães da tarde

perdido em casebres de papel pintado

o cheiro a bróculos nas escadas

exemplo do pôr do sol aqui pousado eternamente


tu envolto no amarelo cansado de fim do verão


como são estas vidas suspensas e convictas

disponíveis na sua clausura de casas de outro tempo

imanência e rigor da poesia


releio ruy belo

insuportável como a música

a cara do meu filho está na página seguinte

truques que o pensamento débil nos ensina e que ruy belo não permite

é insuportável ler rodoreda com as suas flores espalhadas

é insuportável a literatura

único bem aqui neste pôr do sol e em todos os outros


virar a página assusta como a guinada no coração

ao conduzir uma leve tontura, presságio do acidente que nunca chega

parábola do ataque cardíaco

alguma coisa na memória antecipada do nosso corpo produz um pó

de prevenção inútil para o desastre possível

a dor antecipada não é piedosa


daquela casa via o nevoeiro eterno, as varinas gritavam “vivinha d’espinho!”

sentia o rumor das aldeias que acorriam à feira e eu com elas


o pôr do sol é platão que regressa

dizem que era feio

e que aristóteles era um janota

o pôr do sol inclemente do peloponeso

não é o pôr do sol melancólico, escandinavo de espinho

é um poema longo com prefácio intrincado

virado para dentro

como tu do avesso


o livro está pousado como a mão de um homem

queria ser a forma distendida do poema


deambulação sem mapa

tenho os olhos secos com a poeira da leitura

respiro fundo e sei que o único lugar é este


esse tecido agreste das tuas palavras sem medida

leio ruy belo e há outros homens por trás dele

caindo um a um nas páginas opacas

poemas longos como o sofrimento

linhas contínuas de anestesia

postfácios de livros em branco enrolados na espuma insólita do mar de espinho


meio dia na areia fina e brilhante

o quartzo microscópico reflecte o sol a pique

esse mineral generoso de nome incerto

na avenida 8 espera-me outro poeta que pede gins

e adormece em todos os balcões

murmura relatos de quando enlouqueceu

e saiu nu debaixo de um casacão de inverno

com um frasco de eno no bolso interior

tinha medo da contra-revolução

esbracejava na rua dentro do casaco armadilhado

e repetia a quem passava:

“hoje é a noite certa para a vida!”


uma tarde esperou-me sóbrio na esplanada

exaltou um novel romancista que depois li com certa forma de nojo

a literatura está cheia de gente com prosápia

de gente acéfala que recebe prémios e quando não recebe

descalça-se e geme de olhos fechados como os fadistas

os fadistas da literatura ainda são mais intoleráveis do que os verdadeiros fadistas


nada disto está aqui já em espinho

cidade como beirute com as vísceras a céu aberto


no caminho metafórico para madrid

imprimes mentalmente o teu capítulo de uma história literária

unívoca em linha recta

dissertando sobre um real que não regressa nunca

não pode regressar por impossibilidade teórica da alegria


a luz dourada das folhas treme

o vento constante, insistente

a luz derramada em espinho

poderia ficar aqui até começar a canção de setembro

mas estamos em abril o mês cruel


não posso ler porque as palavras cheiram a ti

calo-me e emudeço

para sempre não é palavra aceitável

preciso de cigarros, não sei fumar


escrevo no verão como ruy belo

vejo o declinar do sol sobre a barba profética

na busca de uma epifania que salve alguém que faça qualquer coisa para cá da morte


sentada nos meus dias nos meus sonhos

assisto à vida ínfima das coisas e de nós nas coisas

objectos úteis que nos fazem tropeçar

acordos, mediações, olhos nos olhos com o mal


estou no fundo das escadas da casa da rua 18

a tentar escrever primeiro e pensar depois

as ruas antigas não mudavam de cara de ano para ano

enquanto pestanejas dura a guerra de tróia


I am the distance you put between

all of the moments that we will be


You know who I am

You’ve stared at the sun

I am the one who loves

changing from nothing to one


em 78 ouvia cohen e lia ruy belo e comovia-me

não sabia bem para quê

em 78 ninguém se comovia sem razão

seria comoção racional vinda do futuro

um toque de melancolia de montaigne


espinho, portugal a precisar de elegias como de pão para a boca

a memória das nossas opiniões dispostas umas sobre as outras


os fenícios talvez tenham passado por aqui, deixando pegadas na areia

onde estão os fenícios hoje?

onde estaremos amanhã depois de gastarmos as energias que nos eram destinadas?

onde estamos nós na memória dos fenícios?


o sol acabou de mergulhar

ao longe já não vejo as casas convalescentes da granja

levanto-me e caminho no paredão: que pessoa vou ser agora?


fallaste corazón

no vuelvas a apostar


2 comentários:

Anónimo disse...

mesmo lido num ápice, este texto chama por outra leitura. Por muitas. Para se saborear a literatura, o seu espelho, a sombra-luz de Ruy Belo. O por do sol cálido de espanha ou o fresco mar português... a letargia de nós que nos deixamos ver o mundo com os olhos dos livros. que cala o amor, o frémito, mas ao mesmo tempo, nas palavras, o deixa entrever.
obrigada Rosa. Assim continuo a acreditar na literatura do sec. XXI...
Isabel Sofia

at disse...

maravilhoso rosa,um poema longo com ruy belo e tantas memórias dentro. já li 3 vezes e revisito.