19 de junho de 2009

Actas do colóquio sobre o Dr. António Carqueijeiro

Ontem há noite - quero escrever mesmo com h, porque houve noite.
Estive com uma especialista em grandes-cantoras-underground-cabaret-nova-iorquinas-com-olhos-exolftálmicos-e-de-baixa-estatura (vulgo, little annieófila) e um moço que nos pregou uma partida: abriu ele um vinho tal, que ao segundo gole já não conseguias dizer o nome completo do vinho e ao quarto copo recitava Os Lusíadas de trás para a frente como se fosse o diabo do exorcista a falar pela boca da Linda Blair. Da Linda Blair actual.
O senhor vinho chama-se “Homenagem a António Carqueijeiro”. Não sei quem foi o Senhor António Carqueijeiro, mas na Nova Crítica de Vinhos (que é uma espécie de New Criticism, mas com os taninos todos alerta e as papilas gustativas mais viradas para o close driking), e de acordo com a recensão do enólogo (profissão que eu não desdenharia, mas já vou tarde) Pedro Gomes leva nada mais nada menos do que 18 pontos.
Este vinho, tal como Jacó que sete anos de pastor servia, estagiou sete anos de idade. Acho um bocado exagerado para estágio, mas eles, os da profissionalização, é que sabem - só espero que o estágio seja pago.
Reza então a crítica naquela linguagem que eu adoraria conseguir ter, já não digo a propósito de um vinho (tarefa que me parece ultrapassar toda a minha competência), mas numa escrita que eu gostaria de poder dominar a propósito de um romance ou de um poema:
“Sete anos de idade parecem não beliscar a concentração e a vivacidade da sua cor rubi. Abre com sugestões ensaguentadas a lembrar vísceras e carne crua: depois disso descobrem-se os apontamentos especiados -cravinho e noz moscada-, os balsâmicos, a caça, a trufa e uma distante sardinheira. Um tinto muito estruturado que impressiona na boca pela concentração gustativa, com um verdadeiro "batalhão" de taninos doces a destacar-se no final apimentado e a mostrar toda riqueza e vigor do vinho. Bem sei que o esforço vai no sentido de reproduzir o estereótipo das Côtes-du-Rhône, mas encontrei neste vinho um certo toque bordalês que me encantou. Grande em qualquer parte do mundo!”
Em qualquer parte do mundo isto é um thriller com um fundo de Morgadinha dos Canaviais, desculpem lá! E em qualquer parte do mundo o “batalhão” de taninos que nos atacaram levaram a conversa mais longe do que se esperava.
Falta dizer que o vinho passou duas vezes por barricas novas de carvalho francês Seguin Moreau. Não foi qualquer barrica, dessas que dão à costa assim que começa a época balnear e que avançam pela areia num difícil equilíbrio de pernas que já não dobram e que parecem cotos a segurar uma torre de menagem mais pesada do que o cavalo de Tróia em hora de ponta! Nada disso! Foram duas barricas, duas, de carvalho francês (carvalhô) primo da Jeanne Moreau! Não se brinca em serviço! Desconfio até que se tivéssemos bebido outra garrafita ainda acabávamos baralhados como o Jules et Jim.
Apesar de não almejar (já viram que palavra tão urinária?) transformar-me em enóloga numa noite, sei o suficiente para poder finalizar, dizendo que este Homenagem a António Carqueijeiro (que tenho a certeza que devia ser boa, excelente pessoa) tinha na boca um final longuíssimo.
O preço. Bom, o preço também era longuíssimo.

1 comentário:

Anónimo disse...

Este senhor era meu avô =)
Com muita pena minha, nunca provei este vinho.
E tem razão, era uma excelente pessoa, merece a homenagem que lhe foi feita!
Adorei o texto
Cumprimentos, Rita..Carqueijeiro..