14 de março de 2010

A cor do mal


1. Enquanto pesca trutas no rio, o professor da pacata aldeia de Eichwald, no norte da Alemanha, apercebe-se que o jovem Martin faz um equilibrismo temerário e suicida no corrimão da ponte. Um milímetro de desvio será a queda e morte assegurada. Ao responder à aflição do mestre sobre o motivo de tal acto, Martin explica secamente, como sempre fala, que queria ver se Deus o deixava viver.
Neste desafio a Deus está contida a formulação extrema do mal que habita aquela aldeia, afinal muito pouco pacata. Aquela e muitas outras aldeias da Alemanha/Áustria do início do século XX. Aldeias e cidades. Campos semi-mergulhados num feudalismo agonizante que querem ver nascer outra ordem e acreditam na decência de uma civilização fundada no progresso nem que para isso se proceda a uma silenciosa mutilação moral. É quase um excesso de iluminismo que pretende, simultaneamente, dois actos de ruptura de sinais opostos: anular a tragédia e desafiar Deus.
Antes de avançar, convém esclarecer que falo do último filme de Michael Haneke, O Laço Branco/Das Weisse Band, que alguns críticos encartados classificaram como macaqueio de Dreyer acrescido de pose, pompa e outros ponpons afins. Alguns destes críticos deviam pagar uma multa todas as semanas pela quantidade de disparates que produzem por centímetro quadrado. Volto ao filme e deixo tais críticos entregues à sua clarividência sobrenatural. Naturalmente.
O filme tem como subtítulo “História alemã de crianças”. Eichwald não é o que aparenta: nem as crianças, nem as forças vivas da terra (pastor, médico, parteira, latifundiários-barões) se sintonizam com as imagens que de si mesmo expõe a fotografia rude e precisa num preto e branco invasivo. Todos são mais complexos, pérfidos, ambíguos, desafiam sucessivas autoridades, praticam uma moral rígida, exigente, austera que se esboroa na intimidade. Nenhum deles demonstra ter medo das consequências. Mesmo quando temem, enfrentam de olhos abertos o seu opositor e não recuam: há uma baronesa que anuncia decididamente ao marido autoritário trocá-lo por outro homem, tremendo-lhe apenas subtilmente a mão ao beber um cálice quando fica a sós; há um jovem que enfrenta a fúria descontrolada do pai feitor e algoz, capaz de o matar de pancada; há uma rapariga que anuncia o próximo crime e aguenta o interrogatório policial (estará a vacilar ou a experimentar mais um limite ao predizer o crime?).
Por que desafiam? Por que provocam? Por que desrespeitam? Para testar os limites como Martin em cima da ponte. Estas crianças serão os nazis do futuro que se aproxima. Estamos em 1914 e dentro de menos de 20 anos serão elas as SS, SA, Gestapos, denunciantes, colaboradores, entusiastas da nova ordem e das Leis de Nuremberga. Klara, a líder infantil, tem o nacional socialismo estampado no rosto, Martin poderá vir a ser um Gestapo sisudo e competente, a menina que crucifica o pássaro com uma tesoura no tampo da secretária do pai-pastor-inclemente treina para torcionária em qualquer recanto do Terceiro Reich. Agem como se os limites tivessem sido anulados e a emoção do carrasco não existisse frente ao sofrimento dos que consideram desprezíveis. O teste é esse: até onde poderão ir na sua progressiva capacidade de dizimar sem vacilar e retroceder, até onde poderão exterminar sem ser vistos, até onde avança a foice do ódio sobre cabeças inocentes (animais, crianças) tal como no campo avançam as foices na seara ou, num momento de revolta, a enxada destrói as couves do patrão. Mas o supremo teste é o que Martin leva a cabo sobre o corrimão da ponte: até onde poderá ir sem Deus o destruir? Na verdade, este é um teste mais virado para últimas resistências da consciência: se Deus não responder a este desafio, pode prosseguir descansado consigo. Naquele momento, o pequeno Martin já não acredita em Deus. Neste braço de força provocatório, Deus é um resto de consciência humanista que há que esmagar para prosseguir no duro trabalho do mal.
Como podem ser tão cruéis? Serão verdadeiras estas crianças? Nalgum tempo, os nazis também foram crianças. É bom lembrarmo-nos que o kindergarten não é um paraíso, contrariamente ao que pensam muitos adultos idealizando a infância, talvez por nunca se terem aproximado de um kindergarten.
Estas crianças são o meio da cadeia de uma religiosidade austera e predadora que não tolera as fraquezas e procede a castigos rituais, aceites tacitamente por ambas as partes. As relações de domínio transformam-se em fricção e despique entre carrasco e vítima. O diálogo entre o médico e a amante parteira que ele humilha, esmagando-lhe qualquer réstia de dignidade e amor próprio volve-se, na resposta dela, num ataque cerrado ao âmago da personalidade do homem que fica reduzido a excremento humano. E tudo isto sem pestanejarem e sem alterarem o timbre e altura de voz. Pacatez e extermínio.


2 comentários:

Chicapardoca disse...

Perfeito.

Anónimo disse...

Muito interessante e bem observado. Um filme notável.De encolher os ombros à crítica redundante e pretensiosa.