25 de abril de 2011

questão de interpretação



poble-sec, bairro pobre sem metro, teve o refúgio 307 dos 1400 espalhados pela cidade. 400 metros escavados com pás e unhas, com uma secção para as crianças não verem o lugar onde estavam e outra com duplo isolamento, menos húmida e arejada para os mais doentes, com soalho de onde se pudesse limpar o sangue.
2000 pessoas apinhavam-se ali quando as bombas franco-nazis começavam a chiar. tinham luz, água, sanitas e bancos ao longo dos corredores gélidos.
no início, o grande problema era fazer desaparecer a terra que dali saía e que ficava em montes, cá fora. os aviões voavam baixo e largavam ali as suas bombas.
quem se julgava a salvo, ia meter-se debaixo da mira da Legião Condor.
o refúgio 307 fica no 169 da nou de la rambla.
eu vivi no 34 do nou de la rambla durante dois anos e não sabia que ali haviam dormido tantas bombas.
as escavações dos túneis eram organizadas pela Junta de Defesa Passiva.
Passiva?

ana, magana, rabeca, susana, lázaro, ramos, na páscoa estamos



— Costumavas ir almoçar com o teu pai, a T. e as paisettes. A um restaurante da Beira, desses que servem pratos de substância. No fim do almoço a paisette ao volante arrancava em contra-mão e tu vociferavas contra o envelhecimento em geral, a Páscoa, o IP3 e a incompatibilidade entre a excelência da carne de Lafões e do vinho reles da zona. Este ano não sei o que te aconteceu mas seja o que for que seja animado.


— Não, na verdade, nunca fizemos almoços de páscoa. Só na minha infância, quando ainda havia pais, todos os tios e avós. Há mais de 40 anos que não pascoamos. Depois do 25, ficámos só com o natal.
Não sei se é da costeleta judia, mas na família embirramos um bocado com a páscoa. É muito rosmaninho aos molhos, muitos pólens das mais oriundas partes, muito sapato novo e apertado da primavera sempre irregular, cheia de amoques, muita falta de pomba assassinada…

Não, tenho estado em casa a trabalhar 12 horas por dia, depois de empurrar o choque do regresso para o fundo da memória.

Ando aqui às aranhas a ver se descubro a pólvora num instantinho.
Fundamentalmente, trata-se de ter uma boa ideia, expô-la em projecto, fazer o streap no adro da aldeia e acrescentar a bibliografia. Até 13 de maio.

O milagre do costume.

26 de dezembro de 2010

22 de dezembro de 2010

Parc' que les fleurs c'est périssable



T'as voulu voir Vierzon
Et on a vu Vierzon
T'as voulu voir Vesoul
Et on a vu Vesoul
T'as voulu voir Honfleur
Et on a vu Honfleur
T'as voulu voir Hambourg
Et on a vu Hambourg
J'ai voulu voir Anvers
On a revu Hambourg
J'ai voulu voir ta sœur
Et on a vu ta mère,
Comme toujours

T'as plus aimé Vierzon
On a quitté Vierzon
T'as plus aimé Vesoul
On a quitté Vesoul
T'as plus aimé Honfleur
On a quitté Honfleur
T'as plus aimé Hambourg
On a quitté Hambourg
T'as voulu voir Anvers
On a vu qu’ ses faubourgs
T'as plus aimé ta mère
On a quitté ta sœur,
Comme toujours

Mais je te le dis
Je n'irai pas plus loin
Mais je te préviens
J'irai pas à Paris
D'ailleurs, j'ai horreur
De tous les flonflons
De la valse musette
Et de l'accordéon

T'as voulu voir Paris
Et on a vu Paris
T'as voulu voir Dutronc
Et on a vu Dutronc
J'ai voulu voir ta sœur
J'ai vu l’ Mont Valérien
T'as voulu voir Hortense
Elle était dans l’ Cantal
Je voulais voir Byzance
Et on a vu Pigalle
A la gare St-Lazare
J'ai vu les fleurs du mal,
Par hasard

T'as plus aimé Paris
On a quitté Paris
T'as plus aimé Dutronc
On a quitté Dutronc
Maintenant j’ confonds ta sœur
Et le Mont Valérien
De c’ que je sais d'Hortense
J'irai plus dans l’ Cantal
Et tant pis pour Byzance
Puisque que j'ai vu Pigalle
Et la gare St-Lazare
C'est cher et ça fait mal,
Au hasard

Mais je te le redis
Chauffe Marcel, chauffe !
Je n'irai pas plus loin
Mais je te préviens
Kaï, kaï, kaï !
Le voyage est fini
D'ailleurs, j'ai horreur
De tous les flonflons
De la valse musette
Et de l'accordéon
Chauffe !

T'as voulu voir Vierzon
Et on a vu Vierzon
T'as voulu voir Vesoul
Et on a vu Vesoul
T'as voulu voir Honfleur
Et on a vu Honfleur
T'as voulu voir Hambourg
Et on a vu Hambourg
J'ai voulu voir Anvers
On a revu Hambourg
J'ai voulu voir ta sœur
Et on a vu ta mère,
Comme toujours

T'as plus aimé Vierzon
On a quitté Vierzon
Chauffe, chauffe, chauffe !
T'as plus aimé Vesoul
On a quitté Vesoul
T'as plus aimé Honfleur
On a quitté Honfleur
T'as plus aimé Hambourg
On a quitté Hambourg
T'as voulu voir Anvers
On a vu qu’ ses faubourgs
T'as plus aimé ta mère
On a quitté ta sœur,
Comme toujours
Chauffez les gars !

Mais je te le re redis
Je n'irai pas plus loin
Mais je te préviens
J'irai pas à Paris
D'ailleurs, j'ai horreur
De tous les flonflons
De la valse musette
Et de l'accordéon

T'as voulu voir Paris
Et on a vu Paris
T'as voulu voir Dutronc
Et on a vu Dutronc
J'ai voulu voir ta sœur
J'ai vu l’ Mont Valérien
T'as voulu voir Hortense
Elle était dans l’ Cantal
Je voulais voir Byzance
Et on a vu Pigalle
A la gare St-Lazare
J'ai vu les fleurs du mal,
Par hasard

28 de novembro de 2010

Todos os dias descobrimos a pólvora


Retomo de forma nostálgica-outonal-crise geral. Et cetera e tal.
Estranha época esta em que encontramos artigos sobre livros não nas colunas literárias ou afins mas encaixilhados sob o epíteto de “tecnologia”... Este saber construir e lidar com artefactos que requer criação e racionalidade não me assusta como donzela ofendida em ardências pelas letras inefáveis. Mas o meu coração balança mais para o lado da episteme, mais para o reino das possibilidades. No conhecimento como no uísque, prefiro-os puros. Quando muito on the rocks. Um e outro. Embora me desse muito jeito ter mais algum “saber fazer” como agora se diz. Mas já em tempos falei avonde sobre a minha tecnonabice.
Bom, vai senão quando, leio numa dessas colunas tecnológicas que o eminente autor de The amplified author and the creative reader descobriu agora isso mesmo: que o autor pode ser amplificado e o leitor criativo. Mas julgais, queridos leitores há muito transviados (e vá-se lá saber porquê), que ele anuncia isto por ter tropeçado, com quarenta anos de atraso, na Estética da Recepção ou por se ter tornado calvinista depois de ter lido Se una notte d’inverno un viaggiatore? Népia!, como diriam os alunos dos meus alunos. É mesmo uma estonteante sequência de achamentos com que nos presenteia: ele é o fogo, ele é a roda, ele é a pólvora e por aí adiante. O papel é que não! Já vamos saber porquê.
Diz-nos então a locutora de continuidade da artigalhada em causa que Chris Meade, o herói de quem falo, conclui que “Basta um computador para acedermos a livros sem precisarmos de entrar em lojas ou instituições assustadoras.” As instituições assustadoras serão, suponho, as bibliotecas, livrarias ou até as escolas. Para evitar tais sustos, basta, pim, um computador. Em pleno Sahara esta informação preciosa e modesta deve dar um jeitão. Ou mesmo na serra da Arada. É logo quem entra à direita, não há que enganar.
E vá lá que a propósito do autor amplificado se concede que Willim Blake seria encaixável neste conceito. O Blake é que se encaixa na coisa como o panado de porco no tupperware, não é o poeta que mostrou aos vindouros as suas visões romântico, místico, libertárias que expandiu a imagem do autor, estão a ver? Na tecnologia cultural a ordem dos factores é arbitrária.
Chris Meade ficou “zangado consigo mesmo por ter andado tantos anos a promover a página, o papel, e não as palavras, que é o que realmente importa.” Percebe-se o alcance da revelação. Do ponto de vista da economia dos meios, o mundo anda muito desequilibrado: as nossas evidências raramente são as dos outros, com clara vantagem para quem joga em casa.
“Para ele, os livros impressos são apenas recordações da nossa vista.” E dá como exemplo a sensação de estranhamento que temos quando viajamos para um pais cuja língua não compreendemos e olhamos para os livros “como se fossem pedaços de madeira”. A comparação é curiosa: madeira para construir casas ou madeira para deitar na fogueira? Madeira da árvore de onde veio o papel, certamente. O livro está ali em bruto, escrito ou em branco é para o analfabeto daquela língua uma experiência de cegueira e de insensibilidade totais. Esta imagem não serve só para fazer sobressair a nossa incapacidade de ler numa língua desconhecida. Serve também, num segundo plano, que aliás é o principal, para mostrar que mais cedo ou mais tarde será esta a nossa relação com os livros. Melhor, que já é assim - os livros impressos são apenas recordações da nossa visita. Não têm existência objectiva, são espelhos dos nossos olhares, sinais de memórias nossas, perecíveis como estas. Este desfile de sofismas baratos assenta na ideia simplista de que o meio não é só a mensagem, nem, ironicamente, a massagem, o meio é tudo, um mundo fechado e concluso como as mónadas leibnizianas sem janelas nem portas. E voilà: uma metafísica da tecnologia para principiantes (em metafísica, não necessariamente em tecnologia). Eu, que leio como os judeus com o lápis na mão, não poderei anotar, riscar, desenhar, deixar marcas no ecrã do iPad. Eu, pobre de mim, que escrevo entre as palavras dos outros estarei, para o reverendo Chris Meade, condenada a permanecer e perecer na idade da pedra ou, o que é sinónimo para ele, na idade do livro. Mas que felicidade a minha! Com o que poupo muito os meus ricos olhos ao pousá-lo no papel e não num ecrã com brilho, reverberações, fonte da síndrome do olho seco e sabe-se lá que poltergeists dali nos podem saltar às canelas!... Estes ecrãdependentes nunca terão ouvido a opinião dos oftalmologistas? Estranho. É um ramo da medicina muito dependente da tecnologia...
“Se queremos chegar às pessoas, é no ecrã que devemos colocar os conteúdos.” Sim, no que respeita às últimas sobre a captura de baleias talvez, para ler o Moby Dick, duvido muito.
Uma coisa é certa, diz-nos, “é mais natural publicar” nos aparelhos digitais. Não será mais natural, será mais fácil com certeza. Para quem quer promover as palavras, este senhor teima aplicadamente em as desconhecer. Ou tresler. Qualquer dia está a dizer-nos que é preciso também saber o que as palavras significam e, ainda!, que as ideias que circulam por aí, no geral, já foram dissecadas, ventiladas, abordadas, discutidas desde há muito. Ou seja, que já alguém descobriu a pólvora. Pena é que ele e sus muchachos tenham sido os últimos a saber.
É lixado ser-se o último a saber. Sempre.
Se não vejamos, a brilhante conclusão tecnológica com que nos brinda: se o iPad não vingar pas de problème. “A grande descoberta são [sic] as aplicações que ocupam todo o ecrã. Sempre assumimos que o computador nos bombardeava com coisas, líamos o nosso email e olhávamos para um web site ao mesmo tempo e as pessoas apareciam-nos de surpresa a quererem falar connosco no Skype. É caótico. A aplicação significa que podemos entrar profundamente na leitura de um livro ou ver um filme e isso tem a qualidade da leitura de um livro em papel. Isso é importante, esta coisa da atenção que damos a uma série e coisas diferentes ao mesmo tempo, as pessoas estão a discutir muito isso hoje em dia.” Ou seja, dá imenso jeito uma coisa parecida com um livro ou com um ecrã de cinema! E assim se fecha o ciclo de onde se quis sair para voltar a entrar pela porta traseira. Mas agora com comando à distância.

Esta brilhante argumentação lembra-me aqueles frutos pós-modernos e patetas que são laranja com sabor a morango ou alperce com sabor a cereja. Qual é o interesse? Baralhar-nos e preparar-nos para um alzheimer antecipado? Se eu quiser comer um morango, porque não como um morango e vou comer um kiwi com sabor a morango? Para quê este jet lag da fruticultura? Já não temos a vida suficientemente complicada com fusos horários, diferenças de classes, discriminações de raça, género e por aí adiante?!, porra!

Vou mas é ler o Moby Dick.
Sempre é uma metanarrativa.
Par o meu filho é uma aventura buédafish.


[Para a Toninha e o Toninho, dois leitores (s)amplificados]

29 de setembro de 2010

era em setemmmbro

o luís miguel faz 53 anos

24 de setembro de 2010

jeudi


— E depois, sabes, tenho este problema tramado de não perceber como é que se passa de segunda a sexta-feira...
— Normalmente atravessa-se a terça, quarta e quinta, mas já sei que isto pra ti é chinês...
— Ainda bem que voltaste pra me dizeres essas banalidades. É que estava aqui a puxar pelo bestunto, até já tinha um pdf engatilhado e não há como um telefonema teu para me trocar as cavilhas no painel.

23 de agosto de 2010

Via Veneto vista da rua do Brasil

“A felicidade consiste em dizer sempre a verdade sem ferir ninguém.” – diz Guido, alter ego de Fellini em 8 ½.
Que pensamento tão tipicamente masculino!
Que aura de quem leva os dias entre a Cinecittà e a Via Veneto, cruzando passeios de largura ostensiva e curvilínea, com o olho em quem circula e a cabeça em Orion.
A sinuosa Via Veneto é a esplanada inalcançável de todos os elegantes de outrora, mitificados libertinos sem emprego certo. Certos apenas naquele passear pelo tempo sem certitude possível.
Agora há um Hard Rock Café, essa praga inexplicável, o reader’s digest da fast-cultura sub-juvenil que adultos bimbos também consomem e exibem ao peito como medalha de tontos certificados. Os mesmos que, sem crianças para acompanhar, vão à Eurodisney e asseguram que se divertiram muito e ficaram sem tempo para ir ao Museu de Orsay ou simplesmente para vaguear pelas ruas.
Agora, abaixo, na Via del Tritone, há a casa Pinocchiotoy que anuncia “souvenir e giocattoli” e exibe reproduções Schleich tão tedescas e autênticas dos gladiatori romani.
Da Via Veneto de outrora resta a curvatura sensual e a possibilidade tão latina de descer a rua deslizando a 10 km à hora e pedir o cappuccino de turista principiante. Melhor sentar dez minutos melancólicos debaixo das magnólias que assistiram a tanta promessa de sexo em tanto pomeriggio troppo azzurro e lungo.
Deixo Barberini e volto a Fellini.
“Adesso vengo, adesso vengo” – grita Mastorbani preso debaixo da mesa, deslizando entre as pernas de dezenas de mulheres. Olho vibrante para todas e para nenhuma.
No final do filme Guido/Marcelo diz, lançando vago olhar ao horizonte repetitivo das suas deambulações: “O que é isto? Estou só a deixar passar o tempo. Não fiz nada na vida.” (Um dia destes alguém me dizia o mesmo, porque é triste como a RDA. Ex-RDA, caso ainda não tenha dado conta.)
Filme profundamente masculino como todos os de Fellini.
Sem ideias para o filme, mas cheio de ideias sobre as mulheres que são só assombrações e marcas de passagem pelo terreno, Guido arrasta-se e arrasta a asa a todas e a nenhuma como se fosse uma inevitabilidade.
Todos lhe querem vender ideias, mas ninguém lhe dá uma ideia de salvação. Haverá ideias de salvação para uso alheio? Guido tenta fugir às pressões da realidade, mergulhando nas suas fantasias sexuais e numa memória atravessada pela culpabilidade. É a confissão de um homem na sua verdadeira condição heterossexual: perdido e imparável na sua bulimia que não se detém sob a culpa, mas não pode eliminá-la, ainda que seja já fugaz o entusiasmo pelo interdito. Provavelmente esta é a definição de tédio.
Um egocêntrico sem ideias que se expõe e espera encontrar saída por e nesse acto. De preferência acompanhado. Guido/Mastroanni/Frederico três nomes para Otto e Mezzo em Roma, cidade fechada.

“Perdoe-se-nos o excesso de citações, mas nós, os críticos, fazemos o que podemos.” — diz um crítico vestido de crítico, com óculos de lentes garrafais e mãos de harpia, virado para a câmara no final caótico de interminável desfile à la fellini.
E prossegue o crítico míope: “Já há tantas coisas supérfluas na vida! Não é preciso acrescentar mais desordem à desordem.”
Diz ele no meio da desordem.

Fellini queixava-se de ser visto como um mistificador. Mito claramente criado ou, pelo menos, alimentado por ele. Num artigo de 1962, começa por assegurar “desde já vos digo que nunca vou à Via Veneto. Bem, quase nunca.” Um pouco adiante acrescenta que no filme inventou uma Via Veneto que não existe. Mas a moda pegou e a rua “fez um grande esforço” por se aproximar do filme. Passou a haver fotógrafos em todos os cantos, starlets em vestido de noite a qualquer hora “ou entrando a cavalo nos cafés.”
Na verdade, diz, os seus primeiros anos em Roma foram tempos de vitelloni.
Roma “era uma kasbah minúscula de quartos alugados em volta da estação principal, com uma população misturada de imigrantes assustados, prostitutas, trapaceiros e chineses que vendiam gravatas.”
Foi mais ou menos o mesmo, com alguma actualização, o que vi em 2008. O mundo em volta de Roma Termini é um microcosmos de bed & breakfast duvidosos e com esquemas submafiosos (ou subcamorrianos, pensava eu vinda de Nápoles em plena crise do lixo) a propósito de tudo e de nada, como senhas para autocarro ou unguentos para infecções cutâneas subtraídos da farmácia, para além da muita droga pesada e dos pedintes de seringa em riste, habituais nas estações centrais das grandes cidades europeias – os pedintes de Roma Termini não são diferentes dos da estação central de Kopenhagen, apenas falam menos sozinhos e usam roupas mais leves.
Reproduzo a narrativa felliana de Fellini de uma ida a Moscovo em 1963:
“O auditório era imenso. Imaginem só, estavam lá cerca de oito ou nove mil pessoas. Mil estavam de pé. Os directores do festival e os jornalistas disseram-me que nunca lá tinha estado tamanha multidão. Fora com a minha mulher, que é muito conhecida na Rússia desde La Strada e Cabiria. Quando eu e Giulietta aparecemos no palco os aplausos foram espontâneos e muito fraternos, verdadeiramente encorajadores, porque estavam cheios de calor e afecto.
Depois começou 8 e ½. As legendas em russo eram poucas e surgiam espaçadamente. Visualmente era, digamos, um pouco desapontador. Como estava a ser projectado na enorme sala de conferências do Krelmin, cada lugar tinha um par de auscultadores e saíam de todos eles ao mesmo tempo traduções simultâneas em francês e inglês... por outras palavras, toda a sala estava cheia de vozes metálicas. Oito mil pares de auscultadores, por muito colados aos ouvidos, deixam sempre escapar algum ruído: a atmosfera era a Torre de Babel.
Apesar disso, o público seguia atentamente o filme, quase respeitosamente, de tal forma que quase me senti pouco à vontade. Compreendi, de repente, que uma história pessoal — as minhas recordações de infância, os meus problemas actuais, as minhas relações com os produtores: uma história que talvez não fosse apropriada para aquelas oito mil pessoas de uma outra raça e com outros costumes. Quase me arrependi. Naquela altura teria feito tudo para tornar o filme diferente e para chegar de forma mais directa àquela audiência.
Vi que alguns momentos que tinham feito o público sorrir ou rir em Itália, França ou América falhavam aqui completamente — havia um silêncio total e gelado. A meio do filme estava convencido de que a tarde ia acabar mais ou menos em desastre. Então, de repente, rebentaram os aplausos. Durante a dança de Saraghina houve mais aplausos — calorosos e francos da parte do público. E outra vez antes de o filme acabar. No final, um último período muito longo de palmas, uma verdadeira ovação. Realmente não o esperava.
Apesar de, provavelmente, o filme não ter sido completamente compreendido, alguma coisa atingira os espectadores: as pessoas estavam perturbadas. E depois da projecção, lá fora, na rua, as pessoas continuavam a aplaudir e a gritar o meu nome durante muito tempo.
Mais tarde, no hotel, um jovem de olhar selvagem e grandes barbas quase caiu de joelhos para me beijar. Fez um discurso enorme na sua língua. (Eles gostam disso: falam sem interrupção e sem se ralarem nada que os compreendam ou não. Talvez estejam tão cheios de emoção que pensem que isso ultrapassa as palavras.) Depois aproximou-se o membro italiano do júri, Amidei, que explicou que aquele jovem era o membro checo. A seguir apareceu outro homem: o búlgaro... De facto, os primeiros a cumprimentarem-me nessa tarde foram os representantes das Repúblicas Socialistas.
Mas o que aconteceu depois foi isto: os oito votos contra o meu filme, no júri de quinze, foram dados pelos membros das Repúblicas Socialistas. Soube que Amidei se voltou para o checo e disse: «Mas ontem beijaste e abraçaste Fellini... desculpa perguntar, mas por que é que hoje votas contra ele?» Com uma candura comovedora, o checo respondeu: «Sim, de facto adorei o filme. Mas recebi um telegrama do meu governo a proibir-me de votar em filmes que não correspondam àquilo a que o festival se destina... é um festival que só deve premiar os filmes dedicados à paz e à amizade entre os povos...etc., etc.» Nessa altura (repito o que me contaram), Amidei pediu que fosse registado em acta o que o representante checo tinha dito. Depois, com o apoio dos representantes americano, francês, indiano e brasileiro interrompeu a discussão. Foram todos ver-me e tivemos uma discussão bastante excitada — bem, bastante dramática. Chegámos mesmo a pensar em entrar em contacto com o embaixador italiano, quanto mais não fosse para assentarmos na orientação a traçar no nosso comunicado à imprensa. Afinal aquilo era um escândalo, pelo menos a nível diplomático. Mas, enquanto discutíamos, apareceu de novo o representante checo. «Já só somos oito e queríamos arranjar uma solução», disse-me ele. «Se lhe déssemos um prémio, aceitá-lo-ia nestas condições: “Damos o prémio a um realizador brilhante, a um artista imaginativo. É pena, no entanto, que este filme não contribua para a paz e a amizade entre os povos?”»
«Até podia aceitar», respondi eu, «se quisesse ter uma anedota para contar até ao resto da minha vida. Mas não vê que ridícula é esta situação? Iria receber um prémio e ao mesmo tempo uma admoestação. Teria de dizer: “Muito obrigado, prometo não tornar a fazer isto outra vez.”»
O checo, pobre tipo, concordou que eu tinha razão. «Sim, sim, é verdade», dizia ele. — «Então, se é verdade», disse eu indignado, «porque é que me vem perguntar se quero aceitar um prémio com estas condições?» acabou por se ir embora e voltou mais tarde com outros dois representantes (o búlgaro e o polaco) para pedirem aos dissidentes que voltassem ao trabalho. Os representantes ocidentais concordaram e, por fim, acabaram por conseguir acordar numa nova fórmula, muito bonita, que não parecia de maneira nenhuma o resultado de um compromisso: «Damos este prémio a 8 e ½ porque é o testemunho do trabalho de um artista à procura da verdade.»
E assim recebi o prémio. Na tarde da entrega dos prémios o auditório ainda estava mais cheio do que para a projecção do filme, e o público aplaudiu freneticamente. Fiquei comovido. Todos os jovens realizadores russos, os jovens intelectuais e escritores que tinham estado a segurar uma vela por mim, se sentiam quase como se tivessem recebido um prémio, isto é: um prémio que os autorizava a ter esperança e a exprimir essa esperança.”
“Com «8 e ½» em Moscovo”, in Fellini conta Fellini, Lisboa, Bertrand, 1982, pp. 107/111.

Estou aqui sentada à espera do Outono, a ma
stigar a esferovite de conceitos e para-conceitos mais ou menos didácticos, todos profundamente inúteis e pastosos. Calculem que até se reclama uma competência existencial entre as várias proficiências possíveis! Ou impossíveis.
Daqui, deste meu posto de incompetente existencial, saúdo-vos com este relato de um mundo antigo no qual o absurdo e o desperdício variavam como um fuso horário entre o ocidente e o leste. O lixo é histórico e não poupa os regimes, as vidas passam e as pegadas desvanecem.
Via Veneto e Via Láctea, a mesma luta!
Boa
rentrée, camaradas!


26 de julho de 2010

baú


alguém sabe onde está a Isabel Horta Coelho?
já sei que é no facebook que se procura, mas eu não concordo com o facebook.

música para morcegos


Sempre tinha sido um bocado ausente. Os outros falavam e ele acordava de vez em quando e lançava um comentário sério que punha os outros às gargalhadas.
Acontecera, por exemplo, uma vez à mesa em Bruxelas, nos anos 80, quando alguém muito admirado com o liberalismo dos comportamentos, dissera: “Ainda hoje vi dois rapazes na rua que iam descontraidamente de mão dada, não é verdade, João?”
E ele nada, a pensar não sabíamos em quê, quando a discussão ia tão exaltada e todos falávamos ao mesmo tempo, esbracejando e brandindo talheres por isto e aquilo.
O amigo que descrevia, como sempre, a cena de modo vívido e a queria sublinhar como um avanço inaudito, impensável em Portugal à época, repetia: “Não é verdade, João?”
Ao que ele, acordando de súbito: “O quê?”
“Os dois rapazes que vimos hoje e iam de mão dada, caramba! Não te lembras de termos comentado?”
E ele, quase sem pronunciar as palavras e com um ar grave:
“Iam de mão dada, sim.”
E imediatamente voltou a ausentar-se.

Pois sempre fora assim.
Agora, com o avançar dos anos, via-o espalmado no sofá novo a olhar para o tecto e a pensar na confusão da vida, sempre com ar de quem não está entre os terráqueos. De vez em quando acordava e fazia um comentário, mas era preciso insistir com ele e perguntar ciclicamente “E tu, o que é que achas disto?”
A maior parte das vezes, se tinha de referir alguém que lhe fizera grande sacanice, no máximo dizia: “É uma pessoa muito complicada!”

Discutimos muitas coisas, sempre com o mote da puta da vida que está difícil para todos, até que eu tentei uma pausa no pessimismo geral pela via do “Talvez noutra vida seja melhor...” o que nos levou ao inevitável “Mas para isso era preciso acreditar na reencarnação.” E por aí adiante, com os problemas subsequentes tais que “Ah, mas eu acho isso muito complicado!... Imaginem que reencarno em alguém num país paupérrimo em África ou num país de muçulmanos ferozes ou num bicho repelente. Não, para isso, antes queria reencarnar numa bactéria! Não, isso também não, porque a hipótese de haver um antibiótico potente dava-me logo cabo do canastro."
“Pois não”, dizia L., “é melhor não pensarmos na reencarnação. Definitivamente, é melhor nem haver reencarnação. É isto que temos agora e mais nada. É o prato do dia, é pegar ou largar. De modo que estamos tramados.”
“Pois.”

Silêncio breve e retomamos, depois doutra bebida, mais animados a dizer mal de alguém que vinha a talho de foice. Ele de vez em quando acordava e dizia algo de telegráfico e mais ou menos enigmático.
Até que, neste desporto de dissecação do alheio, falamos de alguém que parece ter mudado de personalidade nos últimos tempos. Era uma mulher doce e compreensiva e tornou-se amarga, complicada, implacável, justiceira de espada na mão como o pai, morto há alguns anos, sempre havia sido personalidade controversa e agreste.

E nós repetíamos: “Não se percebe, não se percebe o que se terá passado com aquela rapariga.”
Ele, que parecia adormecido de olhos abertos no sofá, sai-se monocórdico e lapidar:
“Afinal a reencarnação existe.”

28 de junho de 2010

o que eu sei sobre o mundialete



ouço na tv um reporteiro em exaltação patriótico-futeboleira a esgrimir um brado saído das mais recônditas profundezas de Aljubarrota: "Portugal está pronto a ultrapassar esse obstáculo chamado Espanha!"

Esse obstáculo chamado Espanha?!!

Mas, na verdade, excluídas as metáforas e referências históricas que nos arrastariam de novo pelo menos até à batalha de S. Mamede ou ao Cid Alarico de Alafões, se não a qualquer neerdental do café da esquina, o home tem razão!
Espanha era ainda nos anos 70/80 aquele pedaço de meseta apresuntada que tinha de se atravessar com muita pressa e leveza, o deserto que tínhamos que suportar sedentos e horrorizados até, finalmente, poisarmos pé na terra prometida: a França, bien sûr.

mas voltemos ao esférico estacionado na relva.
sei pouco de futebol e, há que dizê-lo com frontalidade, tenho raiva a quem sabe.
mas há tempos ouvi outro comentário televisivo eloquente e subversivo. era a véspera de um benfica-malfica qualquer e rezava o vate: "há grande tensão nos balneários!"
não me lixem se isto não é um desporto um bocado gay!
é, pelo menos, cheio de subentendidos.
que eu, obviamente, não entendo.

outra coisa que não compreendo é a sobrevivência de um desporto que pode terminar com um empate a zero!
estou farta de pensar e não me lembro de mais nenhum em que isso aconteça.
das duas uma: ou aquilo é a "bola pela bola" tal como havia a "arte pela arte," ou é um bocado nihilista, o que o torna um pouco mais interessante.
a não ser que se viva na Mongólia.
explico: uma amiga empreendeu uma complicada viagem a sós e contra a opinião de todos à Mongólia (imaginem as voltas que uma portuguesa tem de dar até chegar à Mongólia!) e, ao voltar, quando lhe perguntaram como era aquilo, só teve um lacónico: "Não se passa lá nada!"

pois, para mim, um desafio que termina com um empate a zero ou é como a vida social na Mongólia ou é nihilismo puro e duro e, neste caso, já pia mais fino e pede bibliografia que, dado o adiantado da hora, não posso espojar aqui do pé (literalmente) para a mão.

pronto, como podem confirmar, não pesco nada de futebol, mas com o dia que se avizinha e com o iberismo ao rubro, vou ler o livro que Eça nunca escreveu sobre "A Batalha do Caia".
essa é que eça.

13 de junho de 2010

odara


Goya, el perro semihundido

Em Pompeia tropecei num fio
plástico e duro como o tempo perdido
volátil e neutro, museu petrificado
ah, a comparação há-de perder-te

40 graus à sombra sem sombra possível
poeira e vento, lixo e secura
um colar de limonada entre o comboio e o circo
vertigem íntima, quase sexual

impossível regressar a Nápoles de barco,
no funicular olham intensamente
tenho a cara congestionada de lava seca,
sangro uma pasta vermelha coberta de cinza
os bebés emparedados, as fotos do invisível,
respiração suspensa desde o meio dia.
O sol declina no fresco da colina verde,
a poeira ficou para trás excepto dentro de mim,
há 2000 mil anos que se afunda na pele
mal pisamos o solo atordoado de Pompeia
e tropeçamos num fio.

Em Pompeia tropeço e emudeço.
Não há nada a pedir, não há água, nem guias, cada um força o olhar
um pouco adiante o Vesúvio único lugar habitável
paradoxo vulcânico na sua lógica introspectiva.

Em Pompeia tropecei no tempo
havia um fio perdido no ar tórrido
o comboio atravessa o lixo
o asfalto cortou-me à chegada
só uma americana diz “can I help you?”
os vendedores de limão viram costas ao sol
em Pompeia as ruas estão limpas,
um bar de tapas chega da antiguidade,
trazido pelo vento áspero, flutua na melancolia.

uma alegria intermitente parece brotar em Pompeia
nos instantes mais ébrios em que inalamos a natureza lávica.
os oscos sentaram aqui os seus rabos primitivos na luz crua,
mais tarde desapareceu a liga dos cidadãos preocupados
viviam no luxo, no ócio, no cio, no álccol,
à sombra da declinação dos séculos por vir.

os gladiadores desfilam interminavelmente na via dell’abbondanza
na calçada irregular e agreste
os objectos falsamente abandonados
parecem exigir tanta atenção como o rosto de alguém que acabou de morrer.

deixa eu cantar para o mundo ficar odara
dizia o poeta trágico, mas ficou apenas cave cane.

queixava-se da falta de vocabulário como se fosse uma pontada nas costas.

10 de junho de 2010

essas meninas


aino kannisto

"Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei por quê."
lvc

Participar na vida interna de forma externa.

Vivo com uma criança numa cidade que me é estranha. Acompanho o crescimento dela assistindo às cumplicidades e pequenos crimes que farão parte da memória futura dele. A criança é um ele, o que importa e complica, porque os homens são mais simples, por vezes simples demais, e isso dificulta tudo.

A vantagem de ser forasteiro é que podemos manter um eterno sorriso de ironia interior. Convém que seja interior, porque os indígenas não brincam com as suas micro tempestades em alto mar. A vantagem é a desvantagem: a exclusividade pode ser a exclusão.

Vejo o filme dos segredinhos trocados nas audições de piano de filhos de boas famílias e olho-os enterrada na minha poltrona de distância irreversível, na cadeira desconfortável de quem chegou tarde e entrou tolerado pela gerência como o da mansarda.

Essas meninas de cabelo ritualmente escovado e repuxado até à dor, poderão daqui a trinta anos, entre dois copos de bom (mau ou, hélas, nenhum) vinho, recordar as audições da professora Galina Zarovnaya, ucraniana talentosa e deslocada que desaguou nesta pequena cidade e lhes fazia embalar as pernas púberes ao som do Sonho de Amor de Liszt.

Essas meninas poderão vir a recordar as vésperas de férias já não tão grandes como as da minha infância, mas ainda assim longas, talvez mais longas do que as que daqui a trinta anos as filhas delas poderão vir a ter, se é que nessa altura poderá sobreviver o conceito de férias ou talvez sejam já indistintos trabalho e pausa, essas meninas lembrarão talvez esses últimos dias de aulas em que já cheirava a férias, um odor picante de todas as possibilidades que impregnava objectos aleatórios entretanto desaparecidos, tardes moles em que se sentavam duas a duas na mesma cadeira, muito encostadas numa luta de ombros ossudos e vigorosos sincopada por uma valsa de Chopin. Era a excitação do momento, a impaciência fim de festa e o desejo pressentido de que nunca mais terminasse, pedra suspensa no tempo, eternamente em escaramuças silenciosas de ombros descarnados e teimosos.

Essas meninas davam pulinhos aos primeiros acordes de Eine Kleine Nachtmusik, no nervoso dos saltinhos delas, una piccola música nocturna.

Não recordarão por certo o meu olhar pousado nas costas delas agora, trinta anos antes, porque neste momento nem dão conta de que as estou a observar. E, no entanto, não desbaratemos as possibilidades do futuro do presente do indicativo, não excluamos a ideia de que poderá haver, daqui a trinta anos, uma forma de alguém, em alguma parte, poder descobrir o que outros não viram trinta anos antes. Não é sempre assim quando relemos? Mas de forma mais afinada e perscrutadora. Quem sabe o que pode ser o tempo daqui a trinta anos... Parece que Stephen Hawking reconheceu ter-se equivocado (precisamente há trinta anos atrás) quando afirmava que a informação engolida por um buraco negro nunca poderia vir a ser recuperada. Se ele se enganou, significa que poderíamos vir a passar este filme só perceptível a meus olhos neste momento, algures, noutro tempo mais adiante para além da minha existência, para outros que aqui não estão agora. Ou seja, que pode haver alguém ou algo que, sem nunca aqui ter estado e sem saber quem eu fui, venha a rever o que aparentemente só eu estou a ver neste momento. Uma omnisciência à rebours, como diria o vate da consciência nacional. Ou uma revisão em que o observador é tão outro como eu sou eu simultaneamente dentro e fora deste momento.

Persistiria, no entanto, uma questão que não sei se a ciência (ou a consciência) poderá algum dia resolver: aparentemente, e a não existir Deus, só eu estou a ver este filme. Ainda assim, poderíamos pôr a hipótese de alguns dos meus átomos poderem reter a memória deste momento, ou poderemos conjecturar que os objectos que me rodeiam (paredes, bancos, porta, tudo o que está atrás de mim e pode ter uma perspectiva semelhante à minha) possam ter sensibilidade e transmitir o écran deste presente já transformado em passado, em futuro do presente. Ou, sendo cépticos, em futuro do pretérito. Simples.

Não sei realmente se o que pensaria o professor Hawking destas meninas em véspera de férias.

Mas, a não ser que o professor Hawking tenha razão em se ter enganado, essas meninas não recordarão o meu olhar pousado nas costas delas, porque na altura não me viram, não sabiam que existia ali uma forte presença ausente que era eu a participar nas suas vidas internas de forma externa.

Entretanto, o meu filho vai crescendo enquanto olho para estas meninas delgadas e musicais, vai criando memórias em que eu vou permanecer de dentro e, depois, com o passar do tempo, cada vez mais de fora, como se eu tivesse existido aquém, além, nesta e noutras vidas, tal a poeira nos olhos das cidades por onde atravessei os meus átomos.

Eu não sou Velazques e não estou no meio de uma obra-prima, apenas julgo ver estas meninas e, de cada vez que se fala de meninas que olham através da câmara directamente para o futuro, entramos no túnel do tempo do qual não podemos sair sem um soluço da eternidade.

Talvez seja o tempo a abrandar para reacelerar de vez em quando como a cálida turbina arquejante de um transatlântico modernista.

2 de junho de 2010

le grand robert


Rato de rua
Irrequieta criatura
Tribo em frenética proliferação
Lúbrico, libidinoso transeunte
Boca de estômago
Atrás do seu quinhão

Vão aos magotes
A dar com um pau
Levando o terror
Do parking ao living
Do shopping center ao léu
Do cano de esgoto
Pro topo do arranha-céu

Rato de rua
Aborígene do lodo
Fuça gelada
Couraça de sabão
Quase risonho
Profanador de tumba
Sobrevivente
À chacina e à lei do cão

Saqueador da metrópole
Tenaz roedor
De toda esperança
Estuporador da ilusão
Ó meu semelhante
Filho de Deus, meu irmão

Rato
Rato que rói a roupa
Que rói a rapa do rei do morro
Que rói a roda do carro
Que rói o carro, que rói o ferro
Que rói o barro, rói o morro
Rato que rói o rato
Ra-rato, ra-rato
Roto que ri do roto
Que rói o farrapo
Do esfarra-rapado
Que mete a ripa, arranca rabo
Rato ruim
Rato que rói a rosa
Rói o riso da moça
E ruma rua arriba
Em sua rota de rato

Saqueador da metrópole
Tenaz roedor
De toda esperança
Estuporador da ilusão
Ó meu semelhante
Filho de Deus, meu irmão

9 de maio de 2010

el desierto


Continuamos a conduzir, a comer e a falar,
avançamos no escuro, folhagem dentro.
Desabou mais um homem, um cartão que ruiu,
paramos um instante
olhamos de lado seguimos adiante.
Com a mão no volante
cantilena mental
avançamos entre o verde e a espessura da noite.

Um rapaz tresmalhado regressa a Beirute,
vindo dos massacres, sacode o olhar
a cidade continua
a poeira é a mesma
dança e bebe no interior da guerra.

Estamos todos em guerra mesmo sem guerra.
À medida que uns tombam, vacilamos e seguimos.
Ajeitamos a mortalha contra a brisa nocturna
e persistimos na frente.
O caminho não espera, o tempo decresce.

Em Beirute ou Little Indian todos vão cair
Antes de nascermos já estamos em guerra

Por vezes uma pausa
e logo prosseguimos.
Mais um comprimido contra o medo.
É certo que vamos cair.
Trituramos legumes,
na sopa boiam dedos.

Instalados para a morte lemos a guerra nos jornais

Avançamos na folhagem, avançamos no medo.
Caminhamos seguros, pisamos fragmentos.
Escrevemos e amamos, triturados por dentro.
As ogivas na praia, as ruas estilhaçadas.
A cabeça no deserto, as mãos a descoberto.

Toda repetición es una ofensa
Y toda supresión es un olvido


Quantas vezes morremos até descansar?

19 de abril de 2010

smalltown agonist



a boa notícia é que, mesmo sem saber onde vivo, a Carla Bley escreve sobre o sítio onde vivo.

18 de abril de 2010

The Lord Is Listenin' To Ya, Hallelujah!





por exemplo, a Carla Bley não faz a menor ideia do sítio onde eu vivo.

é uma porra, mas ninguém disse que a vida é justa.

17 de abril de 2010

nem biografia nem autorizada


Pelo já invocado, vi, com o atraso que me compete, a notícia da morte de Malcolm McLaren no passado dia 9. E por prosaicas razões de assalariada-mãe-atarantada-chateada-com-o quotidiano-em-geral-e-com-o-país-em-particular, escrevinho agora e é se querem, que a minha vida não é isto...

Verifico na net que continua disponível o contacto
MALCOLM   MCLAREN
Malcolm will return shortly...


To contact Malcolm McLaren, email: office@malcolmmclaren.com


... o que torna o moço tão compassado quanto eu e lhe atribui uma ubiquidade (ou uma invulgar capacidade de resposta aos seguidores) próxima da de Deus.
Duvido é que Deus transformasse uma antiga sex shop numa loja de roupa shocking e albergasse no seu (da loja, não dEle) no seu interior rapaziada capaz de cuspir blasfémicos god shave the queen. O agora perecido dizia com justeza que era “more magician than musician”.

Nascido em Londres em 1946 e criado por uma avó abastada e parece que não abastardada, ainda Malcolmzito frequentou mais de dez escolas de artes, em todas causando sururu com as suas extravagâncias. Com este curriculum de pesquisa sociológica e muitas idas ao Principal de serviço, não admira que se pusesse a ler os situacionistas. Mais cedo ou mais tarde, lá nos sai na rifa bibliográfica.

Estava ele a caminho do Maio de 68 em Paris, quando outra pendência lhe salta às canelas e eis que fica a ocupar uma escola em Croydon. (Por acaso, tive um badge que ostentava sob fundo de camuflado um desafiante "Welcome to Croydon!" — o equivalente a algo como "Bem-vindo a Coselhas!” ou "Bem-vindo à Baixa da Banheira!" Imaginação ao poder e paz na terra entre os homens de boa vontade. Talvez não por acaso, algum anónimo apreciou particularmente aquele sábio dizer e o badge passou à lista dos desaparecidos em combate. É natural. É a circulação dos bens culturais.)

Chegou pois atrasado a Paris, sobrevivendo com bonomia àquela inveja inglesa em relação aos franceses que a essa hora faziam barricadas nas ruas, lançavam cocktails para dentro das lojas, viravam carros e esventravam as ruas ocupadas e armadilhadas. Curiosamente, como diz Milos Forman chegado a França para as festividades de Cannes, andavam uns a tentar erguer a bandeira vermelha no centro da Europa, enquanto outros tentavam derrubá-la do lado de lá, em Praga. Esquizofrenias do zeitgeist...

Na década de 1970, regressado dos States a Londres já maduro e manager, eis McLaren com a não menos surpreendente namorada Vivienne Westwood abrindo a célebre loja Sex. Tinha ele tido a epifania da época: é mais importante a atitude do que o som. Vai daí, inventou os Sex Pistols, transformando John Lydon em Johnny Rotten, mais uns alfinetes, mais umas camisolas rasgadas, mais umas performances, umas artes plásticas, umas popalhadas bem embrulhadas e apimentadas, uma coisa leva à outra e por aí fora (estou a adoptar o método narrativo Vueling, não sei se dá para perceber).
Mitómano, manipulador, McLaren fez da Sex um ponto de encontro de punks, proto-punks, artistas, proto-artistas e provocadores em geral.
Os Pistols duraram dois anos e mudaram muito coisa. Outros tão ou mais importantes para a música se lhes seguiram. McLaren fará incursões na música, partindo de um princípio ergonómico e pop— “Roubo as canções de outras pessoas e tento melhorá-las". Recorrente na pop art ou, como dizia o outro, da "poupar-te". Aqui literal e ecologicamente.

Malcolm McLaren deixa um filho, Joseph Corré, fruto da sua relação com a estilista Vivienne Westwood. Corré é um dos fundadores da marca de lingerie Agent Provocateur, despida por muitas celebridades, exposta em anúncios controversos e exibida como high-end lingerie, ou seja cara como o catano, embora se desconheça a cotação do catano. Por sinal, quando li high-end lingerie pensei que era roupa interior para trazer por fora, o que não deixava de ser uma ideia exibicionista d' agent provocateur. Afinal é só micro roupa macro cara.

Voltando aos Pistols: se ainda hoje usamos gel no cabelo é muito mais por causa deles do que dos rockabilly. Aliás, os rockabillys usavam brilhantina e não gel. Quando muito, concedamos que a brilhantina fosse um gel in nuce. A ideia estava lá, mas a consistência ideológica não. E, de resto, quem é que hoje usa brilhantina? Comparem com o número de marcas de gel em qualquer supermercado...

Sei que o rapaz McLaren abandonou as escolas de arte por preferir “ser um falhado extravagante do que ter um sucesso benigno”.
“E tinh’rrazão...”

13 de abril de 2010

contra-informação de referência


Ouço com frequência "Vinha no jornal de hoje, não viste?" e apetece-me responder com a verdade: "Não, não li. Não leio jornais todos os dias. Não se aprende grande coisa com os jornais. E mesmo quando leio, é sempre com moderação e às colheradas."
De facto, leio o jornal de hoje, amanhã e depois de amanhã e os de fim-de-semana, duas ou três semanas mais tarde. Deve ser por esse defeito de anacronismo que também não sei ler revistas. Na realidade, até acho que não tenho a noção de revista. Leio tudo como se fosse literatura ou ensaio, com sublinhados, pausa para reflectir, citações e este processo aplicado a jornais e revistas revela-se uma canseira e uma corrida inglória contra o tempo.
Por isso, senti um certo conforto quando no sábado, uma amiga, num raro momento de silêncio do jantar, lança a dúvida para a mesa: "Quem não tenho visto aparecer ultimamente é a Rainha-Mãe. Sabem se está doente?"
Ao que todos em coro: "A Rainha-Mãe morreu praí há três anos!..."

E garanto-vos que a amiga é das pessoas mais informadas que conheço.
Mas tinha saltado aquele capítulo e a Rainha-Mãe ficara-lhe suspensa no tempo, agarrada à sua capeline estival e à chávena de gin como um tónico essencial na taxidermia.


flower power


Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself