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De regresso à edição, que o desvio foi longo. Refiro-me ainda a Death Sentence/A Vida em Surdina de David Lodge. A Editora Asa tem o mérito de, há alguns livros a esta parte, nos presentear com arranjos gráficos mais cuidados, fugindo à regra das editoras mainstream com capas passíveis de provocar lesões profundas no nervo óptico. Profundas e, no meu caso, irreversíveis porque não volto a olhar para elas. Ainda assim, não se coíbe a Asa de espalhar pelos frontespícios das obras editadas, dizeres chamativos do tipo pague um e leve dois. Não, é claro que infelizmente o conteúdo não é esse, mas antes tiradas de profundidade crítica como “Impressionante! (The Gardian)”, “Magistral! (Lire)” e por aí fora. E nós a gastarmos tantas palavras para apresentar um livro! Lá fora basta um adjectivo (com ponto de exclamação, note-se). Ainda para mais, já tivemos essa tradição bem representada na inefável pessoa do antigo presidente Américo de Deus Thomaz que sensatamente opinava: “Só tenho um adjectivo: gostei!”. Não há dúvida que gostamos de complicar, como dizem os espanhóis...
Na Asa, mais cuidado gráfico, mas continuação da rebaldaria na revisão como sói usar-se na maioria das editoras. A tradução deste livro (Tânia Ganho) não terá sido fácil. Há mesmo dificuldades, como os trocadilhos e mal entendidos devido à surdez da personagem, que me parecem bem resolvidas. Inexplicavelmente, surgem falhas que põem a nódoa infame na toalha impecavelmente lavada e estendida e a que uma boa revisão poderia pôr cobro. Partindo do princípio de que um tradutor não pode solucionar tudo e que há debilidades que um segundo e treinado olhar pode detectar, partindo do princípio de que os revisores são as pessoas que menos erros de língua portuguesa darão e que, por isso mesmo, um bom revisor vale ouro, as editoras deveriam apostar neles, agarrar os bons e pagar-lhes em conformidade, ou seja, bem. Muito bem, mesmo. Acham? Nã, nada disso! O que interessa é o imprimatur e pôr a circular enquanto está quente como pãezinhos saídos do forno.
E assim, como não há revisão cuidada, lá se mancha o trabalho árduo do tradutor com o jargão do taxista e do comentador desportivo. Que facada no coração da língua (portuguesa) ao tropeçar regularmente nos “eu pessoalmente”, nos “duvido de que me possam ajudar” (p. 171), na colocação incorrecta do pronome pessoal (constante armadilha de quem fala mau português) — “ela pediu-me para ajudá-la” (p. 198), “[...] ou será que qualquer método interpreta a experiência em vez de representá-la?” (p. 17) — nas repetições facilmente evitáveis — “mas motivado exactamente pelos mesmos motivos” (p. 177) — e, finalmente, num dos meus horrores de estimação: o uso e abuso do mal fadado adjectivo “respectivo”! Exemplos desta pecha entre outros possíveis (infelizmente abundam): “(...) o seu cérebro passa revista a estas possíveis acções e às respectivas objecções a cada uma delas (p. 216); “E embora fosse compreensível que os próprios mineiros e as respectivas famílias quisessem conservar o seu trabalho(...)” (p. 218).
Por que é esta obsessão com a respectividade? Será uma forma de deixar claro que não “é tudo ao monte”, embora esta ideia seja sempre portuguesmente aligeirada pela esperança messiânica do “e fé em Deus”?
Quando se diz “estavam eles e as respectivas esposas” fico sempre intrigada. Porquê respectivas? Não podia ser só “as esposas”? Para quê essa insistência no acasalamento de legalidade comprovada? Para começar, embirro com a palavra “esposa” que me soa sempre a “esponja” o que não é de grande dignidade para as mesmas (como se diria usando o mesmo padrão de mau português). Depois, questiono-me sobre as verdadeiras intenções desse adjectivo com ferozes instintos de possessividade: e se as respectivas não forem aquelas? Que temos nós a ver com isso? Ou, já que estamos em clima de ciberdúvidas, que temos nós a haver? Nada, geralmente não somos chamados para o possível folguedo que espreita, caso as esposas não se confirmem ser aquelas que deveriam ser, ou seja, as respectivas. É que até podem ser casamentos liberais ou mesmo swingers e está o narrador a coartar infinitas ramificações de possibilidades narrativas com aquele deselegante e castrador “respectivas”. É o típico narrador que julgando escrever uma frase neutra do género “Passa-me o sal, se fazes favor”, está afinal a dar um patético tiro no pé. Isto é a prova da não neutralidade narrativa, do fim da suíça da narratologia e a comprovação da ignorância dos nossos escribas que assim lançam mão dos subterfúgios mais inestéticos da língua que deveriam ter na ponta da dita. (Como vêem, é só um pequeno esforço – qualquer pessoa inteligente consegue escrever como uma besta).
Estas alarvidades de quem julga que está a falar bem, quando só está a conseguir desfeiar o português, semeando os textos a torto e a direito com os respectivo/a, mesmo/a, dito/a, chovem, como dizia o outro, das mais oriundas partes. Podem ler-se até em textos do Ministério de Educação, em textos tidos como normativos da DGDIC e tentáculos afins. Ou respectivos tentáculos, para falar bem esse mau português.
É uma praga. Dá muito nas pessoas que lêem pouco. Está para o português como a filoxera para a viticultura: em expansão inexorável e resultante da imprudência humana. É a maleita do respectivismo galopante.
Ando com um livro de José Rodrigues Miguéis à cabeceira — A Escola do Paraíso (1960). Vou abrir ao acaso, porque sei que sai sempre, nem que seja só a terminação como na lotaria:
“A luz é frouxa e tamisada”; “As janelas coalhadas de gente a olhar”; reencontro termos como "perliquitetes", "tasquinhar"; ou as imagens sugestivas d'“a bota afiambrada” (esta é queirosiana), “a penumbra atravancada”, “o cão que cainha” (esta podia ser do Mário de Carvalho), “o cabelo comicha” (esta também eu uso), enfim, uma escrita que é um manjar de surpresas do português.
Ou estoutro naco suculento:
“Ao contrário, a casa da Miquelina é um antro de excitação, embora sem derivativos nem gratificações. Há mulheres de olhos lustrosos, cor de violeta ou pervinca, às vezes macerados, doridos, com olheiras fundas, roxas: caras redondas, de boneca, epidermes alvas, rosadas e macias, com frequência pálidas (diz-se que é das noitadas), e a Sarah tem sardas, o nome sugere isso mesmo. Bocas rasgadas de sorrisos húmidos e quentes, com dentes que brilham; caracóis e encanudados, mãos cuidadas, rendas e pulseiras, perfumes e cremes, pós de arroz leves. Quando ali entra, envolve-o logo uma atmosfera carregada de feminilidade, uma indefinível, pesada, quase sufocante sensualidade, que o embriaga e enlanguesce.
As mulheres disputam-no aos gritos, festejam-no, agarram-no, erguem-no ao ar, apertam-no ao seio fofo que exala aromas, comem-no com beijos. Ele não protesta, e até gosta. Não é como ser asfixiado entre os joelhos do sr. Mealha. Nem como quando teve de dormir acompanhado de duas primas, parece, mulheres feitas na opinião dele, ambas solteiras, novas e perdidas na solidão da serrania beiroa, que o beijocavam e apertavam com frenesim: e ele, aflito, reclamava ar, queria ‘escupir’! elas riam-se. Mas há quanto tempo isso foi, tinha ele dois anos, pouco mais: durante a tal viagem memorável que ele esqueceu por completo! Aqui ninguém o beija na boca, o que teria repelido sem remédio, de nojo. Há uma pureza física no imaginário impudor.
Este mundo de meias palavras, olhadelas, vertigens e subentendidos, é impenetrável: nunca um gesto, uma palavra, um sentido explícito. Mas tem de haver qualquer coisa. Por muito que o deseje — às vezes abre uma porta inesperadamente — nunca avista um corpo nu, mesmo só em parte, nem uma cena íntima: quando muito um braço, rendas confusas, uma bata entreaberta, um espartilho preto ou cor-de-rosa, uma pantufa de borla, um retalho de epiderme quente, um gesto mais vivo de pudor, a exclamação de alarme — “Ah, és tu! Gabrielzinho, não sejas curioso!” — temperada de langor e riso... Porque se escondem elas?” (75/76)
Quantos Saramagos e Lobos e Antunes precisa uma literatura de aguentar para ter direito a gente na penumbra (gente de 3ª classe, mas de primeiríssima apanha), para ter gente que escreve assim? Quantos chatos temos de aturar ou de fintar para termos acesso a estes luxos que já se estavam nas tintas para o pedopsiquiatricamente correcto e as Laurindinhas que vêm à janela do salão paroquial, mesmo antes de se saber que estes dignos representantes da mediocridade iriam existir?
Enfim, “haja saúde!” como diz sempre um colega meu quando lhe coloco questões decisivas, intrincadas e de solução impossível. E mais direi citando a correcção linguística e o apuramento estilístico do “Diário de Coimbra” num título de uma notícia local, aqui há anos: “Faltou a luz na rua Visconde da mesma”.
Assim é que escrever, ó gandulage!